01_ Entende-se por Saneamento Básico (doravante SB) o conjunto de serviços que cuida da Água Potável + Esgotos Sanitários e Pluviais + Lixo + Controle de Vetores. Com o aumento explosivo da população e da urbanização, são serviços cada vez mais essenciais, o que só é possível fazer com recursos e gestão adequados.
02_ Assim como a telefonia e a eletricidade, o SB precisa e pode ser auto-sustentável, para não faltar, evitar o desperdício de recursos, já tão escassos, e não sobrecarregar o setor de saúde pois SB é saúde preventiva.
03- Para isso precisam cobrar uma tarifa para cobrir todos os custos, aí incluídos os investimentos, a operação, a manutenção, a formação de quadros, melhorias, expansões, reinvestimentos, a gestão, o tempo investido e um risco inerente a tudo e que no caso poderia e deveria ser modesto. E só.
04_ É importante lembrar que, no SB há monopólios naturais, e o mercado é de baixíssima elasticidade ao preço cobrado, ou seja, ninguém consegue alterar muito sua necessidade de água, sua ida ao vaso sanitário nem a produção diária de lixo só porque o custo unitário está maior ou menor. Por isso as tarifas precisam e podem ser módicas, já que o mercado está garantido.
05_ Outras atividades, de difícil ou injusta cobrança proporcional ao uso, tais como educação, saúde de emergência, transporte e segurança, precisam dos recursos do Estado com prioridade. A educação é necessária quando o cidadão ainda não produz e não pode pagar as contas, a saúde de emergência é necessária quando o cidadão não pode produzir e não pode pagar as contas, o transporte iguala as distâncias e moradias e a segurança não parece ser justa se for medida e cobrada caso-a-caso.
06_ O “SB” implantado pelo mundo tem três arranjos institucionais: ou é gerido e fiscalizado pelo Estado, ou é gerido pelo setor privado e fiscalizado pelo Estado, ou é gerido por “cooperativas de usuários (*1)” e fiscalizado pelo Estado, cada um dos 3 casos com diversas nuances.
07_A fiscalização pelo Estado justifica-se por ser um monopólio natural.
08_ Também é corolário que, qualquer organismo fiscalizando a si mesmo, resulta no mínimo ineficaz, daí porque o fracasso sistemático desse arranjo Estado & Estado.
09_ Aproveitando o momento em que tanto se discute o setor, do ponto de vista organizacional, às vezes com a superficialidade inerente a questões ideológicas, como se a água ou os dejetos de ricos e pobres fossem diferentes, às vezes com a superficialidade de meras questões de provas de cursos de MBA (visões meramente jurídicas ou meramente contábeis e neófitas), este artigo sugere incorporar ao debate as estruturas tarifárias vigentes no mercado de água e esgotos, assunto que vem sendo sistematicamente esquecido, ou relegado, e é primordial.
10_ A prevalência das “estruturas tarifarias em degraus crescentes por medidor” (subsídios cruzados internos), que chamaremos de ETDCPM, abstrai a “economia de escala” um dos princípios básicos dessa ciência (a economia) e falseia o princípio de que pobre consome menos água do que rico (por economia, por medidor), quando o que ocorre é o inverso.
11_ Neste artigo, pretende-se ao menos lançar a dúvida, de que esse modelo ETDCPM prejudica tanto o setor que torna inviável administrá-lo, seja pelo Estado, seja por empresas privadas, seja por “cooperativas”, seja por quem for.
12_ Não é preciso ir muito longe no tempo, talvez uns 50 anos, e os serviços de água e esgotos tinham tarifas decrescentes conforme o aumento do consumo por medidor. Nas escolas econômicas racionais, o argumento que fundamentava essa estrutura de preço unitário decrescente chamava-se "economia de escala". Embora continue racionalmente válido, os interesses imediatistas, a demagogia proposital ou não, têm prevalecido, em especial no SB.
13_ Consta que essas ETDCPM surgiram no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro e foram prontamente internacionalizadas pelo Banco Mundial e pelo BID, como um “ovo-de-colombo” para aumentar receitas, garantir pagamento aos bancos de fomento e a seus financiadores. Sua gênese teria sido por volta de 1973, no governo Médici com Delfim Neto ministro da economia. Por algum motivo resolveram “congelar” a inflação, na época medida pela FGV, só no município do Rio de Janeiro, e valendo para todo o país. Para isso, congelaram os “serviços públicos" no Rio de Janeiro [*2]
14_ Pois bem, nesses idos de 1973 / 74, o que fizeram a então CEDAG (Cia. Águas da Guanabara) e a ESAG (Empresa de Saneamento da Guanabara que cuidava dos esgotos)? Ambas com grandes dívidas a pagar ao Banco Mundial e ao BID, oriundas de financiamentos para o sistema Guandú e para o interceptor e emissário oceânico de esgotos, criaram [*3] uma "tarifa básica", que foi congelada conforme as instruções de Brasília e uma "estrutura tarifária" crescente com o consumo: quem consumia mais pagava mais pelo preço unitário do serviço.
15_ Para justificar, criou-se o discurso, demagógico, de que era socialmente justo, com o pressuposto falacioso de que, a ligação de água que consome mais água é a dos mais ricos.
16_ Na prática, aumentou a arrecadação, e muito, sem aparecer na inflação imediata, o que foi uma agradável surpresa para os órgãos financiadores que passaram a receber em dia seus empréstimos. E daí porque esses “bancos” passaram a apoiar essas estruturas de forma entusiasmada.
17_ De início, timidamente, pequenas diferenças, até as escandalosas variações de hoje, onde, por exemplo, o mesmo metro cúbico de água cobrado no Rio, e na prática em todo o país, varia mais de 7 (sete) vezes entre o menor valor (R$ 4,91/m3. mês, consumidor domiciliar nas zonas B dos municípios) e o maior (R$ 34,35/m3.mês consumidor industrial nas zonas A) [*4]. Como o metro cúbico de esgoto acompanha o da água, o problema é sublimado, ou seja, um consumo de meros 30m3/mês ou seja, 1,0m3/dia (5 pessoas normais consumindo 200 litros/dia cada) pode acarretar uma conta de R$ 2.000,00 (US$ ± 375,00) em jan2023 [*4].
18_ Talvez por esses motivos, as tarifas de serviços ditos “públicos”, que seriam para reembolsar os custos inerentes, acrescido de uma margem pelo trabalho, pelo tempo e pelo risco envolvidos, e eram uma coisa relativamente simples de entender, gerir e auditar, acabaram se tornando objeto de discussões e propostas complexas, fora do contexto, quase mirabolantes, que vão de “distribuição de renda” a “inibidores de consumo” (mesmo quando não é preciso), a “direito de cidadania” (tudo passa a ser), etc..
19_ Aliás, como o assunto não tem lógica nenhuma, só o descalabro administrativo, não há leis (nem no sentido legal nem no científico) a serem seguidas, cada um faz o que quer. Porque não aplicar os mesmos critérios para a eletricidade, para a telefonia, para os combustíveis?
20_ E porque o valor do m³ de água para o comerciante é diferente do mesmo m³ cobrado ao industrial? Será que o comércio e a indústria não atendem a mesma população que acaba pagando do memo jeito? E quando a atividade do comércio ou da indústria é mais ou menos dependente de água? Seja um relojoeiro, ou confecção com baixo consumo de água agregado à sua produção, ou seja restaurante, lavanderia ou fábrica de bebidas que precisam muito de água, nesse caso não há distinção? Qual a ideia? Expulsar os grandes consumidores da lista de clientes?
21 Partindo do princípio, incontroverso, de que, normalmente (não se venha argumentar com exceções), as residências mais pobres têm mais residentes no mesmo endereço, do que as residências mais ricas, é fácil entender que, na estrutura tarifária atual, a residência mais pobre vai acabar pagando mais pelo mesmo m3 de água do que uma residência de melhor padrão. Ou seja, os pobres são levados a reprimir o consumo, tomar menos banhos, ir menos ao banheiro, beber menos água. Essa é a verdade. E ninguém discute isso. É até cruel, de tão injusto, de tão errado.
22_ Tecnicamente, até passivos contábeis estão sendo criados: para não perder consumidores industriais e comerciais de relevo, parece que concessionárias estão fazendo acordos paralelos com alguns deles. Por que com alguns? É segredo?
23_ Alguém disse: “a mentira muito repetida acaba prevalecendo como pseudo-verdade”. Resultado: a falsa desculpa, inicialmente tímida, de distribuição de renda com fundo social virou uma pseudo-verdade. Se os critérios são bons, por quê não aplica-los também às tarifas de telefonia? Quanto mais falar mais caro o minuto! Por que não?
24_ Água é água, esgoto é esgoto, não tem ideologia nem diferenças entre uns e outros, nesses quesitos, somos todos absolutamente iguais. SB não serve para ser usado para redistribuição de riqueza, pois só vai servir de engodo. A ciência tributária estabelece como distributivo o “IR” (imposto sobre a renda). Cabe à sociedade lutar para que seja efetivo e eficaz. Qualquer outra abordagem é, ou ignorância, ou inocência, ou demagogia ou uma mistura.
25_ Quem consome mais, quem está mais perto da fonte de água colabora para a economicidade do sistema como um todo e para sua viabilidade, deve pagar um preço unitário menor, calculado racionalmente em função de distâncias e economias geradas. Isso parece não entrar na pauta. Por quê?
26_ As parcelas de “justiça social” seriam mais justas tarifando o especulador imobiliário, por uma "demanda instalada" quando houver tubulação disponível em frente ao terreno vazio ou casa fechada. Como está, criam-se animosidades gratuitas, transforma o barato em caro e o caro em barato.
27_ Já está em tempo de dizer que o rei está nú, que as injustiças criam um ambiente hostil às operadoras (estatais ou privadas). Essas hostilidades certamente criam necessidades (jurídicas, de propaganda, etc.), que custam dinheiro reduzem as margens e, a médio prazo, não beneficiam ninguém. A curto prazo, deve haver algum interesse, algum mistério, porque não é crível tamanha ilusão de tantos por tanto tempo.
28_ As exceções, as necessidades sociais, que existem, não devem e não podem ser ignoradas, poderiam ser tratadas com um “vale água” do tipo “bolsa família”.
29_ E a transição do sistema existente para um sistema racional precisa ser estudada e avaliada para não fracassar por falta de planejamento nem ficar à mercê de sabotagens.
(*1) em outros países, e particularmente nos Estados Unidos, as empresas em que ninguém detém mais que 50% são chamadas empresas “públicas”, reservando para aquelas em que o Estado detém mais de 50% o nome Empresas Estatais.
(*2) consultar http://memoria.bn.br>per030015_1978_00132 (Jornal do Brasil de 18ago1978 capa e pág 15)
(*3) ouvido pelo autor de diversos engenheiros da CEDAG que, por volta de 1973, participaram das reuniões que criaram o “pseudo-subsidio-cruzado interno” nas tarifas da CEDAG: Carlos M.F.Jatahy, José Carlos Chaves, Antônio(?) Turano, Reinaldo Leuzinger. A CEDAE surgiu em 1975, com a fusão da CEDAG (1962), ESAG (1972) e SANERJ
[*4] D.O. RJ, de out2022 estabelecendo as tarifas a partir de nov2022
Miguel Fernández y Fernández
Ex-engenheiro da SABESP, presidente da AQUACON, diretor regional do Instituto de Engenharia, sócio da ABES Associação Brasileira de Engenharia Sanitária (desde 1970) e ocupa a cadeira 101 da Academia Nacional de Engenharia
Texto com 11.267 toques, Ra, 2023abr11, revisão 2024set04, Artigo Publicado na Revista do IE out2023, págs 58, 59, 60
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