Por volta de 1990 me envolvi no projeto da nova adutora de água para La Paz (Hampaturi a Pampahasi), tendo ido à Bolívia umas 15 a 20 vezes.
Um “visto” para trabalho levava meses, e era uma burocracia enorme. Conclusão, viajávamos todos (europeus e brasileiros) com “visto de turista”, que só valia para uma entrada. Quem ia muito era comum ter problemas na “imigração”.
Nosso contato lá usava uns “despachantes” que davam certa “cobertura” no aeroporto. O pessoal da aduana, ao mesmo tempo que fazia vista grossa para não atrapalhar os negócios, ao não encontrar nada, ficava irritado. Acho que o pressuposto era que você ia “levar um pó”, o que elevaria o “pedágio”.
Como fui um dos que mais viajava para lá, acabei sendo o primeiro a ter problemas. Numa das chegadas, o encarregado olhou o passaporte cheio de entradas em La Paz, chamou um jovem policial e me encaminhou para uma tal “sala 11”, num canto do terminal do aeroporto igual às de muitos filmes do gênero “Expresso da Meia-Noite”.
Depois de um bom tempo ali, esperando, comecei a achar que a burocracia para o visto de trabalho teria sido mais sábio. Finalmente entrou o “inquisidor”, um tipo típico em qualquer lugar do mundo, creio que eles também vêem os filmes e incorporam os personagens. Sargento Hurtado, se chamava. Sentou na única cadeira em uma mesa tipo carteira escolar e olhando na minha cara com um sorriso de “te peguei – dependes de mim” perguntou:
_ que tanto vienes por acá? Comércio?
Sem dizer nada a ninguém, bobamente, havia inventando um enredo “brilhante” para explicar porque ia tanto a La Paz:
_ és que tengo uma “novia” acá.
Cara de surpresa e irritação do Hurtado. Lendo os pensamentos dele (que eu não esperava):
_ “Esse brasilero tá vindo aqui comer nossas mulheres e ainda fica rindo na minha cara! Vou fuder com ele”
Me arrependi da história na hora pois não tinha previsto esse viés, mas não havia como voltar atrás.
_ Donde está la “noivinha”? Esperando en el aeropuerto?
o aeroporto de “El Alto” muito pequenino e com poucos voos por dia, pela demora já devia estar deserto.
_ La novia es casada, yo soy casado y de eso no puedo hablar.
Cara de mais surpresa e mais irritação, desta vez acrescida de curiosidade desconfiada. Não falou mas deu pra perceber: seria a mulher ou a filha dele?, a irmã?, a vizinha? Então disse:
_ vou chamar o consulado e a embaixada Brasileira agora aqui e extradita-lo hoje mesmo.
_ por favor, não faça isso, pode me trazer muitos problemas.
De repente tudo muda, ele interpreta que minha amante era da embaixada, logo também brasileira e, já com cara de cumplicidade disse:
_ ah! É brasileira também?
Entrei no jogo
_ é uma situação muito delicada, o que posso dizer? Ponha-se no meu lugar, o que faria?
_ sorriso largo, já filando um cigarro do meu maço e me conduzindo para fora com cara de velho amigo e cúmplice: “nosotros los fumantes devemos ser unidos, bienvenido, que aproveche!
Incrível! Inacreditável! A partir desse dia os funcionários do aeroporto me conheciam, me olhavam com admiração, com sorrisos cúmplices, eu era passado como VIP, só faltava aplaudirem. Sabendo o que era, ficava completamente sem jeito. Acho até que eu corava. Enfim, vida que segue
Um ano depois e muitas viagens e passagens pelo “El Alto”, em um bar de La Paz, à noite, estando com a turma da SAMAPA (Águas de La Paz), cruzei com o Sargento, que conhecia meus amigos. Estavamos todos já um pouco “altos” (sem trocadilho, por favor). Esclarecimentos feitos, rimos muito, mas olha o comentário dele:
_Como no aeroporto todos ficaram sabendo da história sempre que o pessoal da embaixada brasileira passa pelo aeroporto ficamos observando e concluímos que o embaixador tem cara de corno mesmo. Se não é você, alguém além do marido tá comendo a embaixatriz com certeza.
O embaixador de então que me perdoe. Se for o caso...
Miguel Fernández y Fernández, Engenheiro Consultor, cronista e articulista,
escrito em 09set2019, 3.823 toques
Muito bom! Ri muito!!