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Foto do escritorMiguel Fernández

O combinado não sai caro

Atualizado: 2 de mai. de 2023

Era 2007 e a QQ Construções, excelente e tradicional empreiteira brasileira, pretendia ganhar um contrato de reabilitação urbana em Bengazi, na Líbia, envolvendo as infraestruturas viárias, de saneamento, de distribuição elétrica e diversos equipamentos urbanos (parques, quadras esportivas, postos de saúde, delegacias, etc.), de certa forma semelhantes ao que o Banco Interamericano financiou na baixada fluminense com os nomes de “Baixada Viva” e “Nova Baixada”. Bengazi, na orla do mar mediterrâneo, é a segunda cidade da Líbia com cerca de 1 milhão de habitantes urbanos.


Para isso, juntou a seu pessoal permanente, um grupo de profissionais não permanentes mas conhecidos e amigos da QQ, que sabiam o que falavam nos assuntos de sua especialidade, e foram todos para a Líbia, não só para impressionar o cliente mas também para conhecer o local, fazer uma boa proposta e avaliar bem os custos envolvidos, já que algumas tarefas não eram bem do dia-a-dia da QQ.


Contextualizando, foram uns oito engenheiros brasileiros, entre os quais o Teles e o Bezerra, que não eram da QQ mas entendiam de fazer os “projetos” (design) que a obra deveria seguir. Entre os outros seis, havia até uma engenheira, a Siena, da própria QQ. A turma se reuniu em Recife de onde pegaram um voo da Alitália para Roma e após uma escala de 24horas, outro voo para Trípoli. Era início de dez2007. O governo brasileiro de então (2º mandato Lula) tinha boas relações com o folclórico Coronel Muhamed Kadhafi que era o Chefe do Estado da Libia (foi de 1961 a 2011). O Brasil tinha um interessante programa de apoio às exportações de serviços das empresas brasileiras de engenharia, via BNDES.


Com o Kadhafi dando as cartas na Líbia e o perfil anti-ocidente que alardeava, ir à Líbia (e voltar) era um problema. Durante mais de 10 anos depois dessa ida à Líbia, todas as vezes que os participantes desse trabalho precisaram tirar visto americano ou entrar em países da OTAN, e foram muitas vezes, as aduanas, sempre os pararam para perguntar o que foram fazer na Líbia em 2007! Acho que nunca caíram em contradição, pois nunca foram barrados. O clima político na Líbia e para com a Líbia era tenso. Kadhafi era acusado de oprimir seu povo, de alguma forma haver apoiado ou ajudado alguns famosos atos terroristas ao redor do mundo, destacando-se a explosão do avião da PanAm em 1988 sobre a Inglaterra e o atentado às olimpíadas de 1972 na Alemanha, entre outras coisas.


Folclórico porque, entre outras coisas, enquanto nós estávamos na Líbia o Kadhafi estava acampado em uma tenda que armou em um jardim de Lisboa onde haveria uma reunião da ONU. Tinha também a seu dispor uma “guarda pretoriana” composta de lindas mulheres e a língua solta, o que fazia a delícia da turma que não gostava dos EUA e de outros países ditos “colonialistas”.


Aos dois que não eram funcionários da QQ (havia mais dois nessa condição), quando foram convidados para a caravana lhes foram prometidos os contratos dos projetos, cada um na sua especialidade. Por isso, embora não tivessem despesas, também não ganhavam. Tudo conforme os usos e costumes do mercado.


Durante uma semana fizeram reuniões, circularam pelas ruas, tiraram fotos, filmaram, foram ver os arredores da cidade, os principais fornecedores de tubos, areia, cimento, ferro, preços, taxas, impostos, advogados, contadores, entrevistaram uma meia dúzia de auxiliares, para ver como eram os nativos, enfim... serviço bem feito. Preparados os subsídios à proposta a turma retornou ao Brasil, cada um à sua cidade e houve alguma comunicação entre os envolvidos, seguido de longo silêncio. Cada um nos seus afazeres, vida que segue, ninguém falou nada, Telles e Bezerra pensaram: o serviço não foi contratado...


Eis que, determinado dia o pessoal da QQ chama o Teles para outro serviço, desta vez na Venezuela e, na sala de reunião em cima da mesa, uma linda “revista QQ” (QQ magazine) de circulação interna e para os clientes e, surpresa, qual era a capa da revista? O canteiro de obras em Bengazi.


O Teles não comentou nada até porque era outra turma da QQ, mas saiu dali e ligou para o Bezerra, que também não sabia, mas ficou muito aborrecido. O pessoal da QQ até podia contratar quem eles quisessem, mas então precisariam reembolsar pelo menos as horas e o trabalho dispendidos na montagem daquela proposta e uma “margem” pelo “distrato”. Eram os usos e costumes. Pelo menos agradecer e explicar por que não foi possível cumprir o combinado!


Resumindo, as grandes empreiteiras brasileiras, haviam passado a adotar um sistema de administração em que cada obra era praticamente uma outra empresa, um centro de custos separado, onde a maior parte da remuneração da equipe “coordenadora” era a margem que eles conseguiam “tirar” do contrato. Quando o chefe do contrato era cafajeste, dava nisso. O sujeito só olhava para aquele contrato, aquele momento, o resto não importava, nem a ética.


No caso, haviam optado pelo calote e pelo mau-caratismo em relação ao Telles e ao Bezerra, talvez para economizar uns trocados dos quais a administração do contrato ficaria com uns 15% de participação ou então para alcovitar algum amigo. E o prejuízo ficasse com quem investiu seu tempo, “não os conhecemos”, pensaram os chefes do contrato na Líbia.


Felizmente a maioria das pessoas é correta e dá para viver. Tanto que outros colegas da QQ, sabedores do episódio, até hoje tentam compensar o Teles e o Bezerra, alguns simplesmente por serem pessoas corretas e por não concordarem com essas atitudes, outros por receio do Telles e do Bezerra, que ganharam fama de serem “bons de praga”.


Tudo porque o Bezerra, que além de engenheiro é caboclo rezadeiro do interior de Goiás, alardeou aos quatro ventos que o Cleiton, o chefe do contrato da Líbia, o cafajeste-mor, ia se arrepender. E o Bezerra mostrava a quem quisesse ver um vidrinho com um pó que ele dizia ser de uma múmia do Peru, onde tinha feito um serviço para outra empreiteira brasileira e ficara amigo de um pajé das maldições Incas. Que aquela poção dava poderes sobrenaturais irreversíveis tão fortes e dava tanto azar ao “trabalhado” que nem morrer o cara morria que era para sofrer por mais tempo. Morrer para quê? E que ele já tinha feito chegar o pozinho ao Cleiton.


Com efeito, a QQ conseguiu o serviço, iniciou os trabalhos em 2009, o Kadhafi foi deposto em 2011, quando o contrato estava no auge da movimentação (no topo da curva de Gauss). Foi deposto e assassinado no meio de uma guerra civil na Líbia. A equipe da QQ por lá, umas 30 pessoas entre as quais a Siena, teve de ser resgatada de noite, em frente a uma praia perto de Bengazi, a nado, com roupa de neoprene, por uma lancha especial, toda apagada, vinda da Itália e operada por militares mercenários, provavelmente providenciada pela QQ. Coincidência ou não os ventos mudaram pouco depois de o Teles contar para o Bezerra a sacanagem que tinham feito com eles.


Foi o que contaram ao Teles que, assim como o Bezerra, sádicamente acharam ótimo: pimenta-nos-olhos-dos-outros-é-colírio, ainda mais quando os outros não cumprem os combinados.


Teles e Bezerra nem tinham pessoal lá nem estavam lá, felizmente. Ficaram aliviados. A Siena nunca mais falou com os “traídos” nem respondeu zaps nem e-mails, provavelmente constrangida por ter ficado na obra e seguido as ordens de esconder o início dos trabalhos.


Dizem que o tal do Cleiton nunca mais se recuperou do trauma da noite da fuga e sua ferramenta, que já era de má qualidade, parou de funcionar de vez, apesar do tratamento com doses e mais doses de testosterona. Parece até que alguém já foi pedir piedade ao Bezerra e um antidoto para o pó peruano, mas o Bezerra diz ele não tem nada a ver com essa parte, que por caridade chegou a consultar o pajé de Pachacayo, mas soube que o Cleiton já era broxa antes do contrato começar. Teriam que ser feitos aditivos retroativos aos contratos. Ninguém se interessou por isso.


Miguel Fernández y Fernández,

Engenheiro consultor, cronista e articulista, abr2023 (7.250 toques)

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