As obras da Ponte Rio Niterói foram iniciadas em jan1969. Os três vãos centrais são em aço, o projeto, alguns cortes, soldas e módulos tipo construção naval, foram feitos na Inglaterra e montados aqui pelo consórcio anglo brasileiro – Dormann & Long, Cleveland Bridge e a brasileira, apesar do nome, Montreal Engenharia. Creio que o financiamento era do Banco Rotchild.
O chefe-gerente do contrato de construção dessa obra, embora de engenharia, foi o advogado Jorge Pastor, excelente pessoa e excelente profissional. Lembro bem de uma reunião com os ingleses, em 1969, para resolver diversos aspectos do consórcio, entre os quais a contabilidade comum. Como estagiário da Montreal, fui chamado para redigir uma ata e passei a ser o redator oficial. O Dr. Pastor ia orientando o que era para escrever. Que rara oportunidade para aprender o que não se ensina nas universidades.
Havia um desentendimento sobre qual moeda adotar. A Montreal preferia o dólar norte americano e os ingleses a Libra esterlina. Lá pelas tantas criou-se um impasse. Para mim era visível que o que o contador da Montreal, o Zolletti, não concordava era com o sistema não decimal da moeda inglesa, mas isso parecia não ser argumento para os ingleses. Depois de uma hora de conversa, sem sair do ponto, já havia uma certa irritação dos dois lados pela não convergência. Eu perdia muito dos diálogos, pelo meu inglês precário, mas era socorrido por um tradutor à disposição dos negociadores na sala.
Nisso, o Dr. Pastor vira-se para o líder inglês e diz: Não entendo a teimosia de vocês, pelo noticiário, a Libra vai passar a decimal em breve e aí tanto faz. Além disso, uma moeda que tem “meia coroa” e não tem “uma coroa” “é dose!” O inglês jogou a caneta na mesa e disse: OK, let’s use american money. Creio que, realmente, um ou dois anos depois os ingleses passaram a adotar o sistema decimal para a Libra. Saí dali pensando em fazer mais um curso de inglês... Era evidente que o inglês era o “esperanto” na prática e na realidade e eu me sentia inseguro com o que eu havia aprendido no colégio e nos cursinhos.
Por volta de 1962 eu havia elegido o francês como minha prioridade, influenciado por uma visão de que o francês era a língua diplomática, e o inglês a “comercial” e assim seria para sempre. Resultado: eu tinha um francês melhor que o inglês. Além disso, eu estudara em um colégio (Aplicação da FNFi) com um ambiente francamente de “esquerda” em que os ingleses e os americanos eram considerados “colonialistas inimigos” e eu, que já era “de direita”, “lacerdista”, não queria provocar mais e sofrer mais bulling politico. Já pensou se eu ainda por cima falasse um bom inglês? Teria sido tachado de “entreguista”, etc. e tal.
Acho que não fui só eu que percebeu a necessidade do inglês que, se já era grande, acirrou-se naquela época. Havia dois cursos tradicionais: o IBEU e a Cultura Inglesa. De repente, surgiram cadeias de cursos: Brasas, Oxford, etc., todo mundo achando que se aprendesse inglês resolvia a vida. Falar inglês virou um objetivo, uma oportunidade, acesso direto a informações, a livros, a música, além do que, ao virar moda, ficou “chic”. Os cursos de inglês se tornaram muito populares.
Registre-se que 1967-69 foi uma época politicamente delicada, mundialmente falando. Na França, memoráveis passeatas, nos EUA os hippies e Woodstock, aqui o congresso de Ibiúna, sequestros de aviões, o famoso AI-5, enfim, farta literatura a respeito.
Voltando à ponte Rio Niterói e aos ingleses, o fato é que a Rainha Elizabeth II chegou ao Rio em 05nov1968, portanto com 42 anos de idade (morreu em 2022 com 97), para abrilhantar a assinatura do contrato de financiamento da Ponte. De avião até Salvador, BA, onde ficou uns dois dias e de onde veio navegando no seu enorme iate, na prática um pequeno navio, chamado “Britannia”, que fundeou na enseada de Botafogo, em frente ao “Morro da Viúva”, tendo ficado hospedada nesse barco os dias que passou no Rio, usando o cais do Iate Clube RJ (na Urca) para embarque e desembarque pelo serviço de alvarengas do clube.
O Iate Clube preparou-se todo para esse protagonismo e, com o complexo de vira latas que assola o país e a pouca autoestima de uma falsa elite, por compadrio e hereditariedade. Apareceram logo alguns “índios” querendo mostrar-se súditos de alguém, no caso quem estivesse mais a mão, e era sua majestade “Liz 2ª”.
Colocaram tapetes vermelhos, reformaram a sede do clube, toldos e passadiços para o caso de chuvas ou de sol, compraram uniformes novos para os funcionários, curso intensivo com aulas de etiqueta, de protocolo, de cerimonial, etc. Dizem que houve até incensos acesos todo o tempo para, na eventualidade de alguém dar um “pum”, a rainha não sentir. A coisa chegou ao ponto de contratarem um professor de inglês visando treinar os funcionários e marinheiros para os inevitáveis contatos com os ingleses. Durante três meses, duas horas de inglês intensivo por dia.
A rainha mal passaria pelo clube, usando o “cais da varanda” para embarcar e desembarcar no barco que estivesse no serviço de alvarenga e ir para, ou vir do “Britannia”, onde subia ou descia pelas escadas externas, que são baixadas nessas ocasiões em que o navio não encosta no cais, ficando ali penduradas de forma inclinada, fazendo um ângulo de uns 300 em relação ao plano da superfície da água. No caso também havia e um patamar horizontal cerca do mar para os rituais a que a Rainha tinha direito: toques de corneta, saudações, enfim... Nelson (*01) deve ter bolado a pajelança toda para si, dizendo que era para o Rei, mas ficou até hoje.
O marinheiro de vulgo “Fumaça” (*02), então com uns 25 anos de idade, era um bom profissional, focado, proativo, interessado, tinha até feito um curso e tirado carteira de “mestre-amador”. Talvez por verem nele tantos predicados, apesar da pouca idade, foi um dos destacados para o treinamento “full” do Iate Clube, começado uns 3 meses antes.
O Agnaldo (apelido Mumu), contemporâneo e conterrâneo do Fumaça, que me contou estes episódios, disse que após dois meses de treinamento intensivo em, protocolos, cerimonial, etiqueta, e língua inglêsa, o grupo de elite dos “treinandos” estava ficando quase insuportável perante os demais funcionários do clube. Fumaça, por exemplo, só atendia por “smoke”, começou a ter trejeitos das aulas de etiqueta, da professora (da Socila), pegando o copo e a xícara com o dedo mindinho levantado, a repetir o que via os marinheiros e soldados fazerem frente os Reis em filmes que passavam, como gritar “Deus Salve a Rainha”: _ GODI SEIVE DE CUIN
Também começou a incorporar ao seu vocabulário do dia-a-dia diversas palavras em inglês: uáter, shirti (um perigo, tiveram que dar aulas extras por causa dessa palavra), gudimorningue, a fudi du ristoranti tuday uas OK, e por aí ia, quando, finalmente, a Rainha chegou.
Tudo pronto, um diretor do clube que tinha ascendência sobre os demais, junto com um Almirante de pijama também sócio não se contiveram e, quando o Britania lançou âncoras e baixou as escadas no costado, já estavam ao pé dela no novo barco de alvarengagem, de nome Cocoroca (nome de tradição do Iate RJ para esse serviço), comprado, preparado e inaugurando ali para esses dois ou três dias de idas-e-vindas. Casco impecavelmente branco, tapete vermelho, os metais em bronze brilhando de polidos, toldo novinho para a Rainha não pegar sol a tôa neste clima dos trópicos, com a logomarca da Inglaterra e do Iate, tudo resplandecendo, cheiroso, dia lindo, perfeito!
A ansiedade do Diretor e do ex-Almirante era tanta que chegaram ao local quase uma hora antes do combinado na esperança de que Ela desembarcasse antes, e esperasse em terra o Ministro que a vinha recepcionar, para eles poderem dizer para os netos e bisnetos que a Rainha lhes tinha dedicado uma hora.
Como convinha às tradições de pontualidade, nem a segurança estava a postos antes da hora, nem os fotógrafos e jornalistas, nem o Embaixador, nem os Rotchild, então a Rainha desembarcou exatamente no tempo certo para, com o trajeto até o cais, onde um RolsRoyce a esperava, não haver delongas.
Foi nesse desembarcar do Britannia, descendo a escada externa, seguida pelo marido, um tal de Philip, seguindo o cerimonial tão ensaiado, no momento que a Rainha parou no tal patamar inferior, quando o corneteiro tocou lá as notas que lhe cabiam, que o Fumaça achou ser a hora da saudação conjunta e, olhando para cima, na direção das pernas da Rainha, gritou, sòzinho, em alto e bom som:
_ GODI SHEIVE DE CUIN
Silêncio sepulcral. Uma eternidade para os que se deram conta do problema. Fingindo que não houve nada, um oficial fala algo bem alto, tipo “preparar para desembarque” a rainha desce os 10 degraus restantes e, antes de passar para o alvarenga, dá uma paradinha, os ingleses fazem a saudação em uníssono, o Fumaça muito sério repetindo junto, agora um pouco atrasado, para não falar sozinho, e mais baixo, pressentindo alguma “mancada” pelo sorriso dos marinheiros ingleses, que se contorciam para não rir:
_ Gódi Sheive de Cuin!
Mas o estrago já estava feito.
Os brasileiros acharam que o Fumaça cometera uma êrro menor, só de “timing”, “it happens”! Mas, inexplicavelmente, os ingleses de alto escalão, pareciam muito aborrecidos, a Rainha e o marido com cara de paisagem, fingiam nem estar ali, o Comodoro, o Diretor, o Almirante reformado, a demais “entourage”, todos em roupa-de-ir-à-missa, desconsolados porque a Rainha e os demais ingleses sequer os olhavam.
Ao chegarem em terra o Embaixador Inglês foi informado do ocorrido e providenciou para que não houvesse mais interação com os nativos não fluentes no idioma dos brancos e o serviço de alvarenga passou a ser feito por um escaler do próprio Britannia.
Depois de comentários circularem, alguns idiotas acharam que foi de propósito, o Fumaça, que passou a ser conhecido como “Barbeiro”, foi demitido do clube e, como “há males que vêm para bens”, para sorte dele, um aficionado da vela com muitas posses e senso de humor, soube do caso, contratou-o para “skipper” do seu novo iate, com algumas vantagens.
Em tempo, a ponte ficou pronta e foi inaugurada em 04março1974, todos viveram felizes para sempre e meu inglês continuou sofrível.
(*01) Almirante Nelson aquele da batalha de Waterloo
(*02) Francisco Corrêa dos Santos, o Fumaça, natural de Camamú, Bahia, onde de cada 10 crianças 7 se tornam marinheiros, era um negro-negro, com cerca de 1,65m de altura, bem apessoado, simpático, sempre bem humorado, sempre de óculos escuros e um bigode do tipo que veio a se tornar a marca do Eddie Murphy.
Miguel Fernández y Fernández
Engenheiro consultor e cronista, abr2023
Miguel, que alegria! Além ter como amigo um brilhante engenheiro, descubro um cronista abordando fatos interessantes sobre a construção da Ponte Rio-Niterói. Como seria agradável conhecer particularidades interessantes que ocorrem em nossas obras. Em muitos aspectos conheceríamos os percalços que ocorreram ao longa da execução. Tanto os alegres como aqueles que nos serviram de alerta para que outros não os cometessem. Continue Miguel, nos agradecemos.