dos 18 aos 20
No meu tempo, o cidadão fazia 18 anos e precisava se “alistar” para o serviço militar, serviço esse que, normalmente, durava um ano, diariamente, durante o qual, dizia-se, o sujeito iria aprender a “ser homem” e “ficar adulto”.
A inscrição, e a primeira apresentação, eram obrigatórias, mas podia-se pedir adiamento por umas 3 temporadas (3 anos). Quem estava fazendo vestibular, para algum curso universitário, costumava pedir esses adiamentos, na esperança de cursar um CPOR (Curso de Preparação de Oficiais da Reserva, do Exército), destinado aos universitários e, dizia-se, menos “brabo” que os serviços militares para soldados-rasos. Creio que o CPOR durava só uns 10 (dez) meses.
A bem da verdade, era uma oportunidade para muita gente se posicionar na vida já que, além de aprender a marchar e cumprir ordens, quem quisesse acabava aprendendo coisas tais como mecânica de automóveis, princípios de eletricidade, de radiocomunicação, a dirigir carros, tratores, guindastes, gráfica, construção civil, cozinhar, enfim, muita coisa.
Havia ainda a EFORM (Escola de Formação de Oficiais da Reserva da Marinha) que comportava uns 100 alunos por ano e era disputada por alguns que gostavam da Marinha ou preferiam a Marinha ao Exército. O problema era que o curso levava dois anos e meio, embora só nas férias escolares. Eu começara a gostar de esportes náuticos, velejando com uns poucos aficionados, no modesto clube de Regatas Guanabara, em Botafogo e queria me aprofundar no assunto.
A minha turma fez 18 anos em 1965, se “apresentou” nesse ano (eu no forte do Leme e pedi adiamento) em função do vestibular em jan1966. Nesse 1966 as coisas começaram atrasadas porque devido às fortes chuvas daquele início de ano com muitas catástrofes no Rio de Janeiro (desabamentos, etc), tudo era adiado. Mal passei no vestibular me inscrevi para a EFORM, uns 10 candidatos por vaga e passamos os 100 que a EFORM comportava. Quem não passou foi fazer CPOR ou torcer por um “excesso de contingente” (havia mais gente que vagas). E sempre havia quem queria fazer o serviço militar. Poucos, mas havia. Por exemplo, o Enir, irmão da Enian entrou firmemente decidido a tornar-se Cabo e depois Sargento do Exército. E cumpriu esse destino. Acho até que chegou a tenente lá no RS.
Bom, aceitos na EFORM, fomos fazer o primeiro ano (jul1966, nov66-dez66-jan67-fev67 e metade de jul67) no CIAW (Centro de Instruções Almte. Wandencolk), na Ilha das Enxadas na baía de Guanabara (em frente ao hoje museu do amanhã), onde nos consideravam “embarcados”. Creio que a Marinha considera as pessoas “embarcadas” quando estão do portão para dentro de qualquer unidade, flutue ou não. Para fins de contagem de tempo para promoções ou aposentadoria creio que há umas nuances sobre o que conta como “embarcado” ou não.
Nossa rotina era, diariamente, chegar ao “cais da bandeira”, ao lado do edifício onde era o Ministério da Marinha, hoje deve ser a sede do Distrito Naval e, impreterivelmente às 07hs00, éramos recolhidos por um “aviso” (tipo de barco com a função de transportar pessoas de um local para outro). O tal “aviso”, que minha memória, sem grande certeza, diz que se chamava Jahú, levava umas 250 pessoas por vez para ao CIAW. Lá aprendíamos “artes de guerra”, ou seja, “ordem unida” (marchar, virar à direita, virar à esquerda, faze “al-to” sem parar de marchar, fazer “al-to” parando de marchar, posição de ”sen-tido”, posição “des-can-SAR”, de “a-presentar armas”, enfim, uma série de baboseiras que tinham lá suas razões de ser do ponto de vista dos nosso milicos. E, esperava-se, provavelmente dos milicos dos pretensos inimigos que iriamos enfrentar. Se os inimigos não seguissem as mesmas cartilhas e apostilas, seria um problema sééééerissimo, como os americanos descobriram ao enfrentar os vietnamitas que não faziam essas ordens unidas convencionais e acabaram, na prática, ganhando a guerra, que envolve além de tiros, a propaganda. Talvez mais a segunda, como fui aprendendo na vida.
Aprendemos a atirar, a desmontar e remontar as armas no escuro, a combater incêndios, fazer ginástica, escalar, rastejar, alguns princípios básicos de máquinas navais, de radiocomunicação, de navegação astronômica, de navegação estimada e de navegação por instrumentos, por ótica, e outras artes navais. Aprendemos também a conviver entre nós e com pessoas diferentes, umas brilhantes, outras ridículas. Aprendemos que a vida é confusa. E aprendemos a conviver na confusão.
Uma das primeiras coisas interessantes que aprendemos foi sobre hierarquia (onde houvesse duas pessoas, uma era sempre mais “antiga” (mais graduada) que a outra, por diversos critérios que todos sabiam “de cór”. Por exemplo, entre nós, calouros aparentemente iguais, a nota da prova de admissão à EFORM prevalecia e, em caso de empate, o mais velho (um dia valia), etc. Aprendemos também sobre plantões e folgas. Quem não chegasse pontualmente até às 7h00 perdia o “aviso” e, automaticamente ficava no plantão daquele dia. E automaticamente o mais antigo (o mais graduado) daquele plantão era liberado para ir para casa naquela noite pois seria substituído pelo “detido”. Então havia uma torcida entre os plantonistas para que alguém chegasse atrasado. E o terceiro mais antigo, torcia para que três chegassem atrasados. Isso para quem morava no Rio e gostava de ir para casa. Havia uns poucos colegas que, notava-se, preferiam ficar embarcados. Os que eram de fora do Rio e com parcos recursos, os que moravam mais longe do cais da bandeira, entendia-se. Uns 3 ou 4, embora não o dissessem, me parecia que, ali tinham mais paz, ou mais conforto, que em casa. A vida é complexa e começávamos a ver, mais às claras, essas nuances.
Havia um sargento encarregado de ver quem chagava atrasado e controlar essas coisas. No primeiro ano (no CIAW) era o marcante sargento fuzileiro naval com nome de guerra “Tranin” (seu sobrenome). Tanto no nome como no perfil (físico e psicológico), lembrava o personagem sargento Tainha, da história em quadrinhos do Recruta Zero. Um misto de pessoa boa e inocente com extremo amor à Marinha, que no fundo era sua família. Pessoa boa e inocente mas com um certo pendor sádico no prazer com que anotava os nomes dos retardatários! Quando todos começaram a chegar antes das 07hs, o Tranin, para não ficar triste, sem ter a quem punir, criou um regulamento folclórico: “só quero o nome do último”. Então, mesmo chegando dentro do horário, qualquer de nós que fosse o último a chegar passou a ficar retido no plantão do dia, para grande alegria dos mais antigos. O jeito foi passar a chegar antes do Tranin. Quantos colegas ficavam revoltados com aquela arbitrariedade! Aos poucos fomos aprendendo a rir dessas situações.
Já que estamos rememorando o aprendizado, aprendemos que não adiantava se fingir de morto para sobreviver: qualquer coisa que acontecesse, desde barulho ou indisciplina, ou desaparecimento de algo, tinha sempre um culpado: o mais antigo presente ao evento que originou o problema. E o mais antigo sempre podia ser qualquer um de nós. Tudo porque, se houvesse um problema, e o mais antigo não tivesse tomado uma providência antes de um superior aparecer, é porque não estava sendo proativo e exercendo suas obrigações, portanto assumiu ser punido. As punições iam desde dar umas 50 voltas, correndo, no campo de futebol ou “pagar” 50 flexões, a ficar retido (“preso”) por “n” dias, na verdade substituindo alguém que estaria de serviço e que era liberado.
Preso, em cela (jaula), só me lembro de dois casos que aconteceram logo comigo, cujos motivos conto, um a seguir o outro na “parte 3, 1968, destas crônicas do serviço militar, já na EN” das crônicas do serviço militar. É justo que se diga que a porta das celas, ao menos para mim, não ficou fechada (trancada a chave), eu só tinha que ficar na cela quando não tivesse o que fazer ou fosse dormir. Mas é meio “sinistro” ficar em uma cela. Mesmo sem estar trancado, não é uma experiência boa.
Numa das vezes, o problema originou-se assim: pedi para ir ao dentista de plantão no CIAW, o que me foi concedido. Chegando ao gabinete do dentista fiquei em dúvida se meu horário era, digamos, às 10hs ou às 10h30 e olhei / folheei a agenda aberta sobre a mesa. O Oficial que estava sendo atendido, um tal de tenente Lapin viu e, na falta do que fazer, me denunciou, por escrito, por ter lido o “diário” de um oficial, crime previsto na legislação da caserna naval, detalhe que êle associou à palavra agenda. Fui a julgamento e declarado oficialmente preso por uma semana. Me pediram para não recorrer, nem criar caso. Fiquei então sabendo que o tal Lapin apresentava desvios de personalidade que mereciam reforma-lo (aposenta-lo) até porque seria perigoso deixar uma arma ou um barco e seus canhões nas mãos de uma pessoa cuja sanidade mental era comprovadamente um problema. Mas porque já não estava reformado? Ora porque! Porque a corporação aguardava que ele cumprisse mais um tempinho na ativa para ser reformado um posto acima (Capitão de Corveta, creio que equivale a “major” no exército), passando a fazer jus ao tratamento de ”comandante” e um soldo um pouco melhor para ele, de forma que sua mulher e seus filhos tivessem um pouco mais de recursos ao longo da vida que lhes restava. Afinal foram muitos anos de companheirismo no Colégio Naval, depois na Escola Naval, e esse comportamento era o que todos esperavam que a corporação tivesse com qualquer um deles. Quem ia pagar a benesse? Era justo comparativamente com outros cidadãos brasileiros? O assunto era falado a boca-pequena, mas nunca abertamente. Mas era idêntico aos funcionários civis, mormente do judiciário, ou de estatais, cheios de direitos, enquanto tem gente passando fome.
Usufruí de um SPA por uma semana pois eu era o coitado vitimado pelo ten. Lapin, então os oficiais do dia (incluindo a noite) me convidavam a passar o tempo na “praça d’armas” com eles. Não se fazia nada mas estávamos” em “alerta, para o que fosse necessário. Vai que alguém resolvesse invadir o Basil varonil.
Certa noite (fins de fev1967?), o colega Samuel estando de plantão, não se sabe porque (ele se achava um tipo mais esperto), resolveu dar alarme por ter, “supostamente”, visto uma embarcação suspeita ali na baía de guanabara, que lhe pareceu um submarino vindo à tona. Era uma situação inusitada. Ninguém acreditando, mas todos sendo obrigados a fingir que alguém (a Argentina?) estava invadindo o Brasil, entrando pelo Rio de Janeiro. Todos os protocolos para esse tão esperado inesperado dia foram acionados. Ao mesmo tempo, uma certa sensação de ridículo. Exército, aeronáutica, estado maior das forças armadas, ministério das relações exteriores, enfim, estávamos ali brincando de guerra. Mas e se não fosse? E se fosse? Arquivos secretos foram abertos e lidos às pressas, mas tudo com um olho nos papéis e outro no FDP do Samuel, pois podíamos estar jogando sinuca, lendo um livro ou cochilando escondido. Não deu em nada, embora todos sabendo que era uma sacanagem do Samuel que, a partir daquele dia passou a ser perseguido por todos, colegas e oficiais e, praticamente, ficar sem direito a folgas. Deve ter se arrependido muito da brincadeira. Tudo que acontecia passou a ser culpa dele. Quando não acontecia nada o sapato ou a fivela do cinto dele não estavam bem limpos, ou a barba mal-feita ou qualquer coisa não “marcava” (era a gíria para não estar conforme as normas) e lá ficava o Samuel preso e revoltado. Nem lembro se terminou o serviço militar conosco. Era um tipo esquecível, de um grupinho esquecível.
Miguel Fernández y Fernández, engenheiro e cronista,
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