Aos 21 anos
A Esquadra era formada, pelo Navio Aeródromo Ligeiro Minas Gerais, o A11, um cruzador (de novo o Barroso, o C11), uma fragata, dois contratorpedeiros (D27 e D28? o D seria de “destroyer”?), duas corvetas e um submarino (é o que eu acho escrevendo este rascunho em 2020).
A turma saiu animadíssima porque, para quase todos, era a primeira viagem ao exterior, praticamente uma ilusão (as passagens aéreas eram muito caras). No meu caso fui designado para tripular o A11 (para os leigos era o Porta-Aviões e pronto) e lá fomos nós brincar de guerra. Minhas funções (e as de outros 5 colegas, um em cada turno) foram definidas no primeiro dia, ora dava serviço na sala de navegação, ora no comando, acompanhando os oficiais encarregados, ora no helicóptero que planava em paralelo ao A11 quando havia exercícios de pouso e decolagem, filmando os pousos e decolagens. Eu virei o fotógrafo-filmador oficial, porque tinha experiência em revelar fotos preto-e-branco, adquirida no laboratório fotográfico do curso de física da FNFi no prédio da FNFi, na av Presidente Antonio Carlos, antiga embaixada-consulado da Itália expropriado como butim da 2ª guerra.
Passei a gostar mais, me sentia responsável e útil, eram funções importantes e, para uma pessoa da minha idade, um desafio, as pessoas confiavam em mim, eu começava a ser gente. Os plantões no comando eram os mais relaxantes, na verdade o comando era só supervisionar se tudo estava andando conforme o planejado. Hoje diríamos que funcionava como um “hub”. De fato ali se trocavam informações com as máquinas (os motores), com a sala de navegação, com os demais navios da esquadra. O guarda-marinha não tinha o que fazer, só olhar e aprender como fazer e como não fazer. Trabalho psicológico.
A sala de navegação já era outra coisa, o oficial de marinha e o GM da EFORM precisavam se dar as mãos para ter um mínimo de confiança no que faziam e levar o navio e a esquadra para onde se quisesse ir, e no tempo previsto. Não havia GPS. Para que se tenha uma idéia, o instrumento mais moderno disponível era um tal de radiogoniômetro. E no meio do oceano não se vêem os faróis, não se vê nada. Se você vê dois faróis ao mesmo tempo sabe com razoável precisão onde está, mas isso só ocorre em certos lugares, por pouco tempo. Na verdade a sala de navegação, para quem queria aprender algo útil e ao mesmo tempo ficar tenso o tempo todo era o lugar certo.
Ali também fazíamos a navegação astronômica e a estimada, calculávamos a velocidade real e a aparente, conferíamos com os radares e quando víamos terra, a chamada navegação visual. Como portugueses e espanhóis faziam isso lá nos idos de 1490?
Na ida, a primeira parada foi em Salvador onde o A11 devia atracar no cais. A entrada do porto foi inesquecível, porque o comandante, um mar-e-guerra de sobrenome Carneiro, certamente querendo impressionar os almirantes a bordo, resolveu entrar e atracar o A11 sem auxilio de rebocadores. Excepcionalmente tínhamos uns 2 ou 3 almirantes a bordo do A11 como meros observadores e para as cerimônias em Portugal.
Na minha opinião e do oficial de plantão na navegação naquele dia e naquela entrada, bancou o corajoso com o dinheiro do Estado, afinal era o único porta-aviões do Brasil, e a manobra arriscadíssima. Quem conhece o porto de Salvador sabe que a entrada para dentro do quebra mar é estreita e com bastante corrente de maré, qualquer errinho da navegação (e do instinto e da habilidade do comandante, da sala de navegação e na mão do timoneiro) ou qualquer falha mecânica, acidente certo. Como o Brasil aloca poucos recursos às forças armadas, os navios quase não navegam, para não gerar custos adicionais, então os comandantes e timoneiros não têm uma “mão” treinada, um “toque”, como dirigir um carro ou um barco novo ou um que você pouco usa.
Quando eu vi o que se ia fazer e as margens de êrro possíveis, fiquei muito tenso, imagina o oficial que chefiava a sala de navegação, que na verdade é quem conduz o navio e dá instruções ao comandante sobre as manobras. O oficial, jovem, quase “teve um troço”. Me pedia para refazer todas as contas sem mostrar as dele, um tal de medir vento e “pitot” (velocidade aparente) e posição visual e antecipar onde se estaria 10 segundos depois em um barco daquele tamanho. Sorte que quase não ventava. Quando atracou sem problemas estávamos com a adrenalina lá no alto e até precisamos sentar, para acalmar e comemorar. A estadia em Salvador dessa vez foi curta. Na saída não lembro como foi, ou não estava no plantão, ou saímos com rebocadores, o que seria o mais lúcido.
Rumo Ilhas de CaboVerde! Logo de cara, o colega Vincenzi (um alto e magro) passava muito mal, como se diz “mareado”, a ponto de que o médico considerou manda-lo para Salvador de helicóptero pois ainda não estávamos muito longe, entretidos em manobras de treinamento. Quando contaram isso para o Vincenzi, que estava no soro no ambulatório do navio, e disseram que ele teria que se reapresentar ao exército para fazer o CPOR, o Vincenzi ficou bom em duas horas e assim foi até o fim da viagem. A partir desse dia, passei a achar que dos diversos tipos de enjôo (mareo), um é psicológico. O amigo e médico Washington B., com quem, anos depois, velejei algumas vezes, em especial em uma regata REFENO (Recife-Noronha-Natal) a bordo do Ilê um MB45 do Cte. Hélio L., corrobora essa tese, já que ele no timão não enjoa, mas fora do timão é uma vergonha, um marinheiro de meia-tijela. Ou seja, nada a ver com os canais semi-circulares. Ou então os remédios anti-enjôo é que fazem efeito contrário.
Cabo Verde é um arquipélago de fala portuguesa, no meio do Oceano Atlântico (na altura do Senegal, já ao norte do Ecuador, no paralelo da Guatemala). Um desses lugares isolados que aguçam a curiosidade. Uma paisagem semi-desértica. Posso dizer que fora o pessoal dessa nossa turma, nunca conheci alguém que tivesse posto lá os pés, com a excessão do amigo Octavio, da Águas de Portugal que nos anos 2005 a 2015 morou lá, em Timor-Leste e em Moçambique) e me convidou a visita-lo o que acabei não fazendo por um motivo ou outro mas que tive muita vontade em ir tive, tanto para conhecer os lugares quanto pela companhia do Octávio, sua simpatia, seu humor e sua cultura.
No trajeto para Cabo Verde, fazendo exercícios pelo caminho, com intervalos para banhos de sol e festejar o cruzamento do equador, lembro de mais dois episódios dignos de nota:
O primeiro deu-se depois do almoço (seriam umas 13hs30), após exercícios de decolagem e pouso dos aviões, tempo bom, céu com aquelas nuvens tipo estratiformes, popularmente chamadas de carneirinho, entremeando o céu de branco e azul, a uma altitude média de uns 5km, no caso mais azul que branco, ou seja, visibilidade boa e sol quase constante.
Minha turma de serviço tinha acabado de assumir seus postos e eu estava na sala de comando (onde vai o timoneiro e de onde se tem uma visão geral, é a torre de comando do “aeroporto” e onde fica o comandante. Todos ainda cansados dos exercícios da manhã, com aquela vontade de tirar uma “siesta”, nem o comandante estava na sala de comando, era um outro oficial que o substituía, tudo rotina, quando um vigia ocular acionou o alarme.
Cabe uma explicação de que, embora com os avanços dos radares, e outros aparelhos eletrônicos, meio que por tradição, meio que por desconfiança dos equipamentos, os Porta-Aviões mantinham (não sei como está hoje) dois vigias oculares 24h/dia: um vigia de horizonte, outro de céu, cuja função é ficar atento à aparição de aviões inimigos.
Então, ao soar o alarme, o vigia foi interpelado pelo interfone e informou: Objetos Voadores Não Identificados na posição 11horas vertical do rumo e 02 horas vertical do través (o OVNI estava acima do A11 (e da esquadra), ligeiramente a frente e ligeiramente à direita).
Lembrando da história do Samuel, achei que o vigia estava de sacanagem. Como não estava fazendo nada mesmo, saí na varanda de boreste e olhei para a direção indicada e, qual não foi a surpresa: lá estavam 3 ou 4 luzes verde-brilhante-fluorescente, iguais entre si, muito fortes a ponto de chamar a atenção, a olho nú, como se diz, naquela hora do dia, pairando sobre nós acima das nuvens. O que me incomodou (me deixou com um certo medo), foi que mudavam de lugar entre si e o centro de gravidade delas também mudava de lugar ligeiramente em relação ao A11, ou seja, continuavam mais ou menos na posição definida pelo vigia, mas oscilando em torno desse ponto, como vespas pairando no ar e que mudam de posição bruscamente, não pareciam fixas. Como estavam por trás das nuvens, ora podia-se ver todas ora não. Com os binóculos podia-se ver mais perto, mas como eram só luzes não melhorava a observação. Cada luz daquelas parecia umas 4 vezes o tamanho e a luminosidade de Vênus ao anoitecer / amanhecer e com um verde característico. Pareciam os faróis dos aviões ao pousar, mas em uma cor desconhecida.
Aquilo durou mais de 30 minutos. Todos puderam ver. Até o pessoal de máquinas que fica junto aos motores, fez um rodízio para ir ao convés ver. Só o pessoal incrédulo que estava dormindo, nas turmas fora dos plantões não viram. Todos tiraram fotos. Todos ficamos meio que com medo daquilo, fosse lá o que fosse. Durou tanto tempo que deu tempo de chegar a “soltar” dois aviões para irem acima das nuvens bisbilhotar melhor. Mas o tempo mudou um pouco, as nuvens estratificadas fecharam, o céu ficou branco. Quando os aviões (a hélice, caça-submarinos, para voar baixo) chegaram no alto, já não havia o que ver. Quem viu, viu quem não viu, azar... mais de meia hora de show, mais de 3.000 pessoas daquela esquadra viram. Emoção para o resto da vida: netos, eu vi, vi não, vimos um OVNI, um Disco Voador!
Quando tudo se acalmou, o comandante (o Carneiro) mandou chamar o marinheiro-vigia que dera o alarme para elogia-lo na caderneta, coisa muito importante, pois levam isso muito em conta para as promoções e não é comum fazer esses elogios na caderneta. A razão do elogio é porque estávamos todos pasmos que o vigia não estivesse dormindo e estivesse atento.
Entendi a importância que davam ao elogio em caderneta quando vi que havia um ritual para esse procedimento: Os que estavam de serviço no comando e os dois almirantes que também estavam por ali de curiosos com o OVNI, nos perfilamos para o elogio que era mais ou menos ditado pelo comandante e transcrito por um escriba que era alguém da intendência encarregado das burocracias.
Quando o elogio já ia a meio, o Comandante parou de ditar e ficou pensando. Parecia estar escolhendo as palavras quando, de repente perguntou ao marinheiro:
_ você estava como vigia de céu ou de horizonte?
ao que, sem maldade e sem pensar o marinheiro respondeu imediatamente:
_ de horizonte comandante.
O Carneiro, sem se alterar, suspendeu o elogio e mandou prender os dois vigias, o ali presente porque ao invés de estar olhando para o horizonte estava olhando o céu e o outro porque não viu o OVNI no céu. Tive que me esforçar muito para não rir. Lições da Marinha e de Marinha.
Miguel Fernández y Fernández, Engenheiro e cronista,
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