1967 a 68 (dos 20 aos 21 anos)
O segundo episódio, digno de nota, no trecho Salvador a Cabo Verde, foi quando cruzamos com a esquadra francesa que, aparentemente por acaso, também fazia exercícios por ali. Quando percebemos a outra esquadra nos radares, os franceses, com radares muito melhores, já nos tinham visto e já tinham assumido posições que, nos manuais de treinamento (de “batalha naval”), já teríamos perdido. Teria sido uma “sacanagenzinha” dos franceses que os oficiais da nossa esquadra não gostaram.
Aqui vou fazer uma pausa na narrativa, para explicar que, naquela época (não sei agora em 2023), os helicópteros eram tripulados por pessoal da marinha, os aviões por pessoal da aeronáutica e havia uma, digamos, rivalidade (não digo hostilidade, mas rivalidade) entre as duas áreas militares, desde a compra do A11. Rivalidade que serviu até de mote para a letra de uma musiquinha (Presidente Bossa Nova, referência ao Juscelino), do então famoso cantor e menestrel Juca Chaves, “... é meu, diz a marinha, é meu, diz a aviação, ah, revolução...” https://www.youtube.com/watch?v=k2m1zK114KA
Dentre as molecagens dessa rivalidade, a Aeronáutica escalava o Major “mais antigo” do quadro para chefiar o grupo do A11, só para não ser subordinado ao Imediato do A11 (imediato de um navio é o oficial logo abaixo do comandante), cargo que, por norma, cabia a um Capitão de Fragata. Relembrando: Mar-e-Guerra = Coronel, Fragata = Major) e, a Marinha, por sua vez, só ‘para não ter a bordo um oficial mais antigo de “outra força”, volta-e-meia tinha que postergar a promoção de algum fragata e coloca-lo como imediato do A11 só para não dar o gostinho à Aeronáutica.
Voltando ao encontro das esquadras, franceses e brasileiros começaram a trocar mensagens de congratulações, fingindo que não se tinham visto nos radares, mas os franceses não estavam satisfeitos em nos humilhar, emparelharam seu porta aviões, bem maior e novinho, com o nosso, colocaram seus aviões para voar no entorno das esquadras. Os aviões franceses eram modernos jatos de caça, ultrassônicos, os nossos a hélice, na verdade eram para outras funções, equipados para localizar submarinos. Nisso, para não ficarmos muito atrás, nossos aviões também decolaram.
Lá pelas tantas, os que estávamos de serviço na sala de navegação, mas na varanda de onde se fazem as tomadas astronômicas com o astrolábio, para não perder os shows, tiveram a impressão que o avião pilotado pelo tenente Caminha, da Aeronáutica, ia pousar no porta aviões francês e ficamos apreensivos com aquilo. Mas não é que o Caminha deu outra volta e foi lá tocar com as rodas do avião que pilotava, na pista do porta-aviões francês, para desespero de todos, brasileiros e franceses. Teve gente que jurava ter visto francês se atirando no chão da pista do Porta Aviões Francês. O feito acabou com as brincadeiras. Brasileiros e franceses recolheram as aeronaves, cada lado “puto da vida” com o outro, mas sem dar o braço a torcer, os franceses mandando mensagens de “ou revoir, foi muito bom encontrar com vocês e uns elogios entre os dentes à habilidade do piloto brasileiro”. Do nosso lado igualmente, “até logo”, foi bom encontra-los, vemos que os aliados estão bem equipados, parabéns, e pedimos desculpas pela ousadia-exibicionista-irresponsável e não autorizada do nosso piloto, que será advertido, blá, blá, blá...”
Ficou no ar que, molecagem por molecagem, a do Caminha foi vencedora, o que criava alguns problemas imediatos:
01_ como punir o herói?
02_ o herói era aliado mas ao mesmo tempo rival, ou concorrente, sei lá.
Como o Caminha passou a ficar mais alegre do que já era, creio que os assuntos foram resolvidos discretamente, com o Caminha ganhando algum outro elogio na caderneta ou alguma promessa de compensação, já que ninguém ia elogiar por escrito a temeridade que ele havia feito. Na Marinha só o Cte, Tarcício, piloto de helicóptero e grande apreciador de gim, é que elogiava às claras o que o Caminha fizera.
Em Cabo Verde, creio que ficamos dois dias, o A11 e o C12 não encostaram no cais (Porto da Praia) mas a todos nos foi dado descer por algumas horas para poder dizer que já pisamos em Cabo Verde. Descemos em turnos. Inesquecível foi a preleção às tripulações feita pelos alto-falantes dos navios: para
>>a_ não atrasar em nenhuma hipótese e que se não fosse no alvarenga (embarcação designada para embarcar e desembarcar gente e coisas entre um navio ao largo e terra e vice-versa) e horário combinados, seriamos deixados lá, provavelmente para sempre.
>>b_ evitar beber água do local (eu só tomei coca-cola e cerveja),
>>c_ evitar relações sexuais pois o médico mandava avisava que ali havia algumas doenças venéreas que êle não sabia curar (depois desse aviso, diziam alguns oficiais que nunca se viu um desembarque tão comportado).
De Cabo Verde fomos para Cádiz no sul da Espanha, sempre fazendo exercícios de tiro, pouso e decolagem, e lançamento de bombas anti-submarino e de localização de submarino com sonar e banhos de sol e mangueira.
Acho que a parada em Cadiz (5 dias) era para dispor de um tempo para, na eventualidade de algum imprevisto ou atraso, a chegada em Lisboa ser no dia combinado. Ao lá chegarmos, meu turno completou o plantão no dia da chegada, ou seja, se quiséssemos, teriamos os 4 dias seguidos “em terra”. Chegamos no meio da tarde e, que me lembre, o A11 ficou de atracar pela manhã, mas houve transporte para terra ida e volta para quem quisesse e estivesse liberado.
Este que lhes conta a estória, o Engel, o Rainho e o Tiago dividimos o aluguel de um SEAT500. Como a gente coube no carro não sei. A vontade de conhecer a Espanha de meus antepassados era tanta que me recusei a voltar para o navio, mesmo que isso fosse um gasto, pois perderíamos muito tempo. Convenci os demais a ficar em terra e dividimos dois quartos com duas camas cada.
De manhã cedo, rumo a Sevilha, sem olhar para trás. O fato é que, naquela noite entrou uma ressaca violenta e o A11 ficou sem encostar pelos 4 dias seguintes. Quem estava em terra ficou em terra e quem estava a bordo ficou preso a bordo. Achamos estranho não encontrar quase ninguém do A11 em Sevilla, só um ou outro dos demais barcos da esquadra, com um boato de que a tal ressaca tinha isolado o A11 que teve de se afastar do porto. Muita sorte nossa e muito azar dos demais.
Em Sevilla, resolvemos ir conhecer a universidade e acabamos entrando para assistir uma aula da medicina (o Rainho e o Engel eram da medicina). Era um anfiteatro e todos, uns 75, alunos e professor olhando para nós 4 embora não estivéssemos fardados. No intervalo, vieram falar conosco, foram muito simpáticos, as moças mais que os rapazes, como era de se prever, e acabamos circulando por Sevilha e arredores os 3 dias que dispúnhamos, chegamos a ir a Cordoba e a Jerez, com 4 bonitas estudantes de medicina, uma mais especial, de nome Antónia. Foi preciso alugar um segundo SEAT500. Ninguém reclamou dessa despesa extra.
Quando voltamos a Cadiz, ainda na estrada, ao descer a serra (entre Jerez e Cádiz), de longe, vimos o A11 manobrando para encostar no cais, o que nos deu um grande susto pois, de início, tivemos a impressão de que estava saindo. O navio encostou praticamente para reabastecer algo, nos pegar e mais uma meia dúzia de oficiais que tinham procedido como nós quatro. Como é sabido que inveja é uma merda, levamos uma enorme vaia do resto da EFORM. Mas ficou por isso mesmo.
Tivemos tanta sorte que, ao chegar em Lisboa, no primeiro dia inteiro foi uma visita à Escola Naval Portuguesa (Sagres, no Almada?) onde participamos de um almoço cinematográfico, em um local cinematográfico e um ícone da civilização ocidental: ali era a NASA no entorno do ano 1.500.
Depois disso nosso plantão voltou a pegar 4 dias direto em terra. Voltamos a fazer o mesmo grupinho e alugar um carro, dessa vez um pouco maior. Chegamos a ir conhecer Coimbra, a recém descoberta Conimbriga, o cassino de Sintra, além de, no último dia em Lisboa, assistir um fado na melhor casa de fados da Lisboa .de então. Sobre esse último dia, veja a crônica “Ciumes Étnicos Alfacinhas” neste conjunto (blog-livro) que o autor chama de “retrovisor”
Ao soltar as amarras pela manhã do dia seguinte à casa de fado, depois de sair perfilados no convés, estávamos tão cansados que dormimos direto e não vimos o resto da saída da barra do Tejo, onde houve que enfrentar muito vento e ondas enormes chegando algumas ondas a varrer o convés de pouso do A11 e sumir os demais navios.
Soubemos, sem confirmação, tornou-se lenda naval, que uns 10km afora da barra do Tejo colidimos com um barco pesqueiro português que buscava o porto de Lisboa ou de Almada e que teria ido ao fundo com a tripulação, sem sobreviventes mas que o assunto fora abafado. Dois dias depois estávamos em Tenerife, ilhas Canárias, província espanhola.
Miguel Fernández y Fernández, Engenheiro e cronista,
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