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Reminiscências, a mais antiga

  • Foto do escritor: Miguel Fernández
    Miguel Fernández
  • 22 de jan.
  • 4 min de leitura

Assunto recorrente em conversas de mesa de bar e de casa é “qual sua lembrança mais antiga da vida?”  Numa dessas conversas, Milton nos contou a dele:

A família morava na Praia de Botafogo, entre a rua São Clemente e a Voluntários, em um pequeno prédio de dois andares e 4 apartamentos, sem elevador e sobre um depósito de distribuição de garrafas da cervejaria Brahma, hoje uma madeireira.  Essa extremidade sul da enseada de Botafogo e adjacências era conhecida como o “mourisco”, sendo um pedacinho do bairro de Botafogo.

Certamente devia esse nome a um pavilhão-restaurante da feira internacional de 1922, ali construído em estilo arquitetônico dito “mouro”, do tipo do castelinho da fundação Oswaldo Cruz, na Av. Brasil.  Por volta de 1950, ali já operava uma subsede do Botafogo de Futebol e Regatas, com uma piscina semiolímpica (a metade da olímpica) ao lado, onde as crianças da nossa idade aprendiam a nadar e depois iam para o Clube Guanabara, onde havia e há uma piscina olímpica); o “pavilhão mourisco” veio a ser também demolido em parte pela construção do túnel do Pasmado, sendo substituído por um conjunto arquitetônico modernento projetado por Oscar Niemayer, abrigando outra piscina semiolímpica e uma quadra de basquete-vôlei, ambas com pequenas arquibancadas, depois também demolido (1985?). Hoje o lugar é ocupado por um conjunto de lojas e escritórios denominado Centro Empresarial Mourisco, uns cilindros de vidro de gosto igualmente duvidoso.  Parece que o local desperta os maus momentos dos arquitetos.

Havia os bondes elétricos (trens urbanos, tranvia) que respondiam por números. O bonde 4, fazia o trajeto de ida-e-volta Praia Vermelha – Mourisco – Tabuleiro da Bahiana (que ficava onde é hoje a o Largo da Carioca, na confluência da Av. Chile, da Av. 13 de maio, da Rua Almirante Barroso, e a rua Senador Dantas). Sempre saindo do Tabuleiro, sempre passando pelo “Mourisco”, onde havia a geradora de corrente contínua para a fiação dos bondes. Pela minha memória, o bonde 5 era o que ia para o Leme, o bonde 11 era o J. Botânico, o 3 era o Copacabana. Não lembro mais.

Com o fim da guerra (mai1945) muitos imigrantes como os pais do Milton (êle com 33 e ela com 32anos) se permitiram casar e ter filhos. Afinal tinha atingido certa estabilidade profissional e a idade limite considerada pela medicina e pela sociedade.  Também era comum irem todos morar juntos com algum dos sogros, por motivos econômicos e práticos.

A avó do Milton assumiu então o encargo de “governanta” de casa e, com a chegada dos netos, de supervisora, e babá. Não era uma pessoa fácil, nem doce. Era rude. E na prática, analfabeta, daqueles camponeses europeus que emigram para não passar fome e por falta de opções.

Era 1951 ou 52 e eram dois irmãos, o Milton com 4 a 5 anos, e o Élio com 2 ou 3 anos. Foram à praia no bonde 4, do Mourisco à Praia Vermelha, com a avó e uma jovem babá, quase mais uma criança, como era comum. As duas precisavam ter cuidado com tudo, o mar ali é traiçoeiro para quem não sabe nadar, afunda de repente, o irmão menor requer mais atenção, uma senhora sentada ao lado ajuda a entreter o mais velho e, de repente, onde está o neto mais velho?  O Milton?

Desespero, gritaria, alguém lembra que a senhora vizinha foi com ele comprar um picolé no carrinho da Kibon.  Mas onde estão? A avó desesperada deixa o menor e a babá com ordens de não se mover dali. Todo mundo já se mobilizando para ajudar, e corre para os jardins da praça General Tibúrcio. O instinto a leva até o bonde 4, parado no ponto final, em frente à estação do teleférico do Pão de Açúcar.

O bonde, só esperando ser liberado no intervalo certo. Avista o neto com a tal senhora já sentados no bonde, aumenta a correria, já gritando entre desesperada e aliviada, botando preconceitos que ouvia para fora, chamando a raptora de cigana, cria-se um grande tumulto, o Milton é puxado pelo braço com força pela própria avó, que lhe “passa um pito” curto e grosso,

A vó, com uns 55 a 60 anos, aquele corpo disforme de mulher que teve que trabalhar pesado, tenta agredir a outra mulher, as pessoas tomam partido, algumas até contra a avó desesperada porque falava com sotaque, estrangeira, de outra tribo.  O policial que ficava sempre por ali, entra na história, o Milton não sabe mais detalhes.  Do que conseguiu entender, perceber, é que o mundo não era fácil e que precisaria, pelo menos, ajudar a ficar a salvo dos perigos.  E nos disse dos seus agora 70 e tantos anos:

_ Foi no meio dessa bronca que me dei conta do idiota que estava sendo, o olhar de coitadinho que as outras pessoas me davam me constrange até hoje.  Ali foi meu segundo parto. Por isso é a lembrança mais antiga, ligou meu cérebro. No tranco, mas ligou. Sou grato à minha avó que, com seu estilo rude e bronco, me mostrou pulso e que as situações precisam ser enfrentadas e resolvidas. Não me fez carinho, nem me tirou parte da responsabilidade. Aprendi a lição. Não ficar esperando alguém fazer isso por você nem que a segurança é só um direito. Por mais que a maioria seja boa e, graças a Deus é, sempre há os (as) FDP.

E ficamos pensando, nada muda, se fosse hoje iam ficar dizendo; “onde estamos chegando”.



Miguel Fernandez, engenheiro consultor e cronista, 2023set

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