Era jul1969 ou por aí e eu era estagiário no escritório central da Montreal Engenharia, na rua São José 90, no centro do Rio. Nas férias escolares os estagiários de engenharia eram mandados para as obras. A minha primeira ida foi para a obra da fábrica da Cimento Goiás, em Palmeiras de Goiás, uns 80km a sudoeste de Goiânia, estrada de terra, distrito de Cezarina, depois, emancipado como município independente.
O Eng. Ilmar era o “chefe da obra” (ou chefe do contrato como diziam alguns) e me foi dada uma mesinha na sala dele, no canteiro de obras, lá naquele meio-do-nada. Acho que ele não ficou feliz, nem infeliz, seguiu as ordens. Bom engenheiro, experiente, sabia como fazer as coisas. Tocar uma obra isolada como aquela não era moleza. Perto de hoje, escrevo em 2023, a infraestrutura de então não era nada, basta dizer que a obra tinha um operador de “telegrafo” e de “rádio”, coisas então consideradas “top” em qualquer lugar do mundo.
Num lugar isolado daqueles era necessário fazer e manter boas relações com o delegado de polícia da região. Então o Ilmar visitava semanalmente a delegacia em Palmeiras e o delegado a sala do Ilmar no canteiro de obras. Não só para manter o bom relacionamento, mas para que todos vissem.
Normalmente o delegado aparecia às sextas feiras, que era o dia do pagamento, em dinheiro, em envelopes cuidadosamente preparados para cada um dos 500 a 1.000 trabalhadores. Todos, oriundos de longe. Maioria de nordestinos, maioria de solteiros, maioria morando nos alojamentos coletivos do canteiro. Os pagamentos semanais era para que não gastassem tudo de uma vez e, ao mesmo tempo, sempre tivessem algum. Um verdadeiro serviço militar.
Numa 2ª feira o Delegado apareceu de surpresar e eu, ao vê-lo entrar achei por bem sair da sala, e ficar fora. Em seguida o Ilmar me contou:
_ Veio pedir para arrumar um emprego na Montreal para o enteado. Isso eu resolvo fácil.
E eu:
_ o que enteado dêle sabe fazer?
_ Nada, vai ser um primeiro emprego, o delegado não aguenta mais o rapaz sem fazer nada em casa e pela cidade.
Alguns telegramas trocados com a sede, no Rio, na 6ª feira seguinte o Ilmar recebeu o Delegado com a boa notícia e me pediu para ficar na sala:
_ Seu enteado pode começar em 15 dias, manda ele aqui para já acertar a documentação com o pessoal do recrutamento e eu quero dar algumas instruções e prepara-lo para a viagem.
_ Viagem? Que viagem.
_ Êle vai trabalhar em uma de duas obras de petroquímica: ou em Goiana, que apesar do nome, fica em Pernambuco, ou em Cubatão, perto de Santos, São Paulo. Vai começar como ajudante de “apontador” ou de almoxarife. Segunda-feira saberemos com exatidão.
E o delegado, com a cara fechada:
_ Mas a mãe dele não vai gostar disso, a gente pensou em ele trabalhar aqui.
_ Delegado, disse o Ilmar, deixe-me lhe dizer uma coisa, aqui não vai dar certo. Vai ser só o menino começar, bater ponto às 7hs, inclusive aos sábados, largar às 16hs e aos sábados ao meio-dia, almoçar empoeirado e suado no bandejão com todos (a comida não é ruim, mas perto da que mamãe faz não se compara e ele vai comparar todos os dias o almoço com o jantar) e à noite ao encontrar os amiguinhos aqui na cidade vão começar a dizer: “tá ganhando pra isso”? Êle vai sentir o tranco, a mãe dele vai ficar com pena, vai se incomodar e te incomodar, os coleguinhas do trabalho vão olhar pra êle como o protegido do delegado, ele vai querer se exibir e contar vantagens na roda de amigos e pode ser desmentido, enfim, não é o caminho que aconselhamos em situações similares. Deixa ele ir, vai ser bom pra êle, pra mãe dele e para o senhor.
E eu olhando para a fisionomia dos dois, fui percebendo a cara do delegado ir se transformando como que entendendo e concordando. Quando saiu, estava feliz e sorridente.
Com efeito, o que o Ilmar falou é a pura verdade. O rapaz foi para Goiana-PE, e tudo deu certo, como soube anos depois, ao encontrar o Ilmar e, rememorando, me disse que o garoto ficou na Montreal, rapidamente tornou-se um bom almoxarife, disputado pelos chefes de obra, e estava cursando engenharia no Rio, enquanto trabalhava no canteiro de obras da Ponte Rio-Niterói com o próprio Ilmar. Mas o rapaz queria voltar para Goiás, ser engenheiro e fazendeiro na região. Tinha propensão a manter suas raízes. Provavelmente voltaria, contando que tudo foram flores, ou não, depende de cada um.
Podia ter dado tudo errado? Podia. Depressões, etc e tal., mas se ficasse também podia ter dado tudo errado.
Miguel Fernández y Fernández, engenheiro e cronista, escrito em 2023 / 2924), 4.508 toques com espaços
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