Touro Sentado
Gustavo de Almeida Nóbrega era um paraibano de Patos, filho de pequeno produtor rural, que chegara ao Rio de Janeiro em 1965, com 17 anos, trazido pelo tio, então sargento do exército, que morava em Bangú, nas adjacências da Vila Militar. Meteu a cara nos estudos e fez os vestibulares para o curso de engenharia. Era vencer ou vencer. Em fev1966, passou para a sua primeira opção: a Escola de Engenharia da UFRJ, popularmente a “engenharia do Fundão”, que tinha esse nome por ficar situada no campus do Fundão (ou Cidade Universitária), um arquipélago na baía de Guanabara que, por meio de aterros, feitos por volta de 1950, formaram uma só ilha, que ficou com o nome de uma delas, a Ilha do Fundão.
Ali foram reunidas as diversas escolas da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Até a capital brasileira ir para Brasília, se chamava Universidade do Brasil). Que me lembre, no nosso tempo já estavam no fundão, além das engenharias, a medicina e a arquitetura. O resto resistia pois os professores achavam muito longe, quase todos moravam na zona sul.
Na extremidade sudeste da ilha, tinha (e deve ter ainda) as ruinas de antigo, convento franciscano e a igreja de Bom Jesus da Coluna, razoavelmente bem preservada, do início dos anos 1700, na área da antiga ilha de Bom Jesus, que que pertence ao Exército, com pequeno quartel, algumas residências para oficiais em trânsito, um asilo militar com casas de antigos soldados mutilados e suas famílias (remontando à guerra com o Paraguai e as guerras mundiais), que por ali foram ficando formando uma vila (soldados da pátria).
Imediatamente antes de chegar ao espaço do exército, mas ainda no que era a antiga ilha do Bom Jesus, ficava a Residência Universitária, ou Alojamento Estudantil, vulgo Aloja. Era um prédio com térreo e mais 3 andares com duas alas, onde, hoje em dia (2022), fica a faculdade de Administração (COPEAD). Constava que esse prédio fora um antigo presídio para presos políticos, do tempo de Getúlio Vargas ditador, e que até o famoso Luis Carlos Prestes (fundador e chefe do Partido Comunista Brasileiro) estivera preso ali. Hoje o NewAlojamento da UFRJ fica na extremidade noroeste da ilha do fundão, onde era a antiga ilha do Catalão em prédio projetado para isso, mas só conheço de longe e ninguém que tenha ali vivido.
Gustavo, como outros alunos de fora do Rio, buscava morar no Aloja. que era gratuito para os alunos. Mas só os que não tinham recursos iam morar ali, não só pelo isolamento, pela precariedade do entorno, pelos mosquitos, enfim, quem podia, se arrumava de outra forma. Mesmo assim, havia uma fila para se alojar ali, ou seja, mais interessados do que as 200 vagas disponíveis. Nos primeiros meses, não conseguiu entrar para o “aloja” e alugava vaga em quarto, em um tipo de pensão, no bairro de Bonsucesso.
Já para o fim do primeiro ano percebeu que havia caminhos de confrarias que facilitavam as coisas e conseguiu ir para o Aloja. As mazelas de quem convivia com a esquerda, que já tinha provocado a sua saída do campo, por medo de ameaças por parte de “grupo dos 11” https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-01/1548945016_8cdb2337b04cb0f1ead6b451d5f62331.pdf . Mas ao invés de se submeter, de se contaminar, como muitos que optaram pelo caminho que parecia mais fácil, criou anti-corpos. Ficou um homem livre.
Os quartos tinham mais ou menos 5 camas cada, com um armário, uma escrivaninha e uma mesinha de cabeceira, por residente, portanto uns 40 quartos (oito por ala e por andar). Tinha um banheiro coletivo grande, por ala e por andar, perfazendo 6 banheiro coletivos cada um com com 8 vasos, 8 lavatórios e 8 chuveiros. Qual terá sido o do Prestes? A administração, feita pela universidade, fornecia colchão e um jogo de roupa de cama e toalha, mas face a qualidade de coisas compradas pelo menor preço, quem podia, providenciava outros por conta própria.
No térreo, uma das alas era ocupada por uma escola primária que atendia as famílias da vila dos mutilados pela pátria. Na outra ala, havia uma lavanderia, uma cantina operada por um concessionário, uma biblioteca, na verdade uma sala para estudar. O aceso era por um ônibus da Cidade Universitária, que circulava entre a Praça das Nações, no bairro de Bonsucesso e o Aloja. Circulava a cada meia hora nos dias úteis e nas horas de aula, fora desse horário, a cada hora, desde que não estivesse em manutenção. Um transtorno. Mas era o que muitos tinham para então.
Na nossa série, no Aloja além do Gustavo, tinha o Antonio Bom (maranhense), o Renato Abreu (de São Fidélis – RJ), o Luis De La Barra (de Cochabamba-BO), o Paulista, o Dagoberto, o Roneí. Não morei no Aloja, o que conto é de ouvir dizer, mas não deve estar muito fora de contexto, pois o que sei, ouvi de diferentes fontes, coincide, e dificilmente seria inventado. Por meio das dúvidas, submeti este texto a três residentes da época, sem comentários significativos.
A administração do Aloja era compartilhada, por um funcionário da UFRJ designado para isso e um colegiado de alunos “eleitos” pelos demais. O “eleitos” entre aspas porque, na verdade, eram “escolhidos” pelos que se organizavam politicamente, e naquela época, de governo militar, guerrilhas, guerra fria, etc, significava grupos de esquerda, do PCB ou do PCdoB, que, embora francas minorias, pelo fato de se organizarem, prevaleciam e pareciam maiores do que são. Como, aliás, ocorre até hoje.
Gustavo era um tipo, bem apessoado, forte, mãos de quem havia ordenhado vacas e cabras, estatura mediana, com algum sangue índio nos traços, de poucas palavras, quase monossilábico. Compartilhamos a mesma sala de aula do 3º ao 5º ano, desde que optamos pela engenharia civil e depois pela hidráulica e saneamento no último ano, ou seja, convivemos bastante. Conversamos pouco, Gustavo quase não conversava. Só prestava atenção com um olhar de ave caçadora. Sentado, braços cruzados. Sua aura transmitia companheirismo. Até hoje, decorridos 53 anos de nossa formatura, mantemos contato, êle lá em João Pessoa, eu no Rio. Nos vimos algumas poucas vezes. A mais notável quando, em 2005, veio com a família, para o casamento de minha filha, me fazendo grande surpresa. Ficou uma semana pelo Rio e perguntei onde queria ir: tivemos que ir no Jockei Club ver os “páreos” de domingo, na tribuna de honra, e fazer uma “fezinha”, coisa que nunca imaginou que ia poder fazer um dia.
Na época, na escola ou no Aloja, algum colega o apelidou de “Touro Sentado”. Apodo perspicaz que o definiu, ao compará-lo com o personagem também monossilábico, de histórias em quadrinhos, com esse nome, emprestado de um cacique, índio Sioux norteamericano. Com efeito, soubemos que o Gustavo, sem querer, havia se tornado uma tipo de “cherife”, eminência parda, talvez um morubixaba, no Aloja, ou melhor, aquele cara com quem, por meio das dúvidas, ninguém se metia, afinal dizia a lenda, em Patos, matava-se por qualquer coisa, tinha até matador profissional por lá.
Tudo porque, em certa ocasião (1967? 68?), ao anoitecer, chegaram ao Aloja dois garotos, com 18-19 anos, do interior, que reuniam os requisitos para se candidatar ao Aloja, ou seja, alunos da UFRJ, sem recursos, família de fora, mas que ficaram no “excesso de contingente”. Como não tinham onde ficar, em desespero de causa, apareceram por lá. A administração da casa, tanto a oficial quanto os camaradas do “colegiado”, fazendo jogo duro, que era impossível, as regras e as normas da casa, etc. e tal, tudo isso no hall de entrada, na frente de muita gente, inclusive na frente do Touro Sentado, que tinha por hábito ficar por ali, sentado e calado, comme il faut.
Sem ter para onde ir e sem saber o que fazer, os olhos dos dois garotos se encheram de lágrimas. O Gustavo se aproximou dos dois, sem dizer uma palavra, fez um gesto para que o seguissem, foi até um dos quartos, arrombou a porta com um chute, e disse: podem ficar aí.
Não se ouviu um pio, os dois ficaram, e ninguém nunca questionou nem reclamou. Soube-se então, que havia três quartos, aquele era um deles, que o colegiado em conluio com a administração, mantinham vazios para casos especiais de apadrinhados ou ativistas companheiros perseguidos. Direitos humanos? Para os meus, Mateus.
Gustavo andou trabalhando pelo Brasil uns 5 anos, com destaque para uma passagem de uns 3 anos pelo SAE de Volta Redonda, até que voltou para a Paraiba, foi ser engenheiro da Cia Águas da Paraíba por uns 5 a 10 anos, de onde se demitiu para abrir seus próprios negócios, de construção e de transportes. Certamente com a gratidão dos dois garotos que alojou, a iluminar seu caminho, prosperou em seu trabalho, chegando a ser um dos maiores empresários paraibanos, sem ser ligado ao Estado. Ascensão semelhante e bem maior teve o Renato Abreu no RJ. Já os que não conseguiram se desvincular, se libertar das hierarquias dos colegiados e das confrarias, em sua maioria, seguiram caminhos menores.
Fica o registro.
Miguel Fernández, engenheiro cronista e articulista, 2022/23
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