No Rio de Janeiro, na virada do ano de 1965 para 1966, o “vestibular” para ingresso nas 3 escolas públicas de engenharia: UFRJ (a Federal, na “Ilha do Fundão”), UFF (a Federal Fluminense, em Niterói) e UEG (Estadual, hoje UERJ, no Maracanã), até então feito individualmente por cada universidade, foi unificado (talvez tenha sido aí o início do CESGRANRIO). Seria no início de janeiro mas devido a grandes chuvas, inundações e desabamentos que se abateram sobre o então Estado da Guanabara, só foi realizado em fins de janeiro1966, em locais tais como o estádio do Maracanã.
Os aprovados iniciaram as aulas, em março de 1966. Na EE-UFRJ, éramos 400 alunos divididos em 4 turmas de 100, tudo já na “Ilha do Fundão” nossa turma foi a primeira integralmente do Fundão, até então as turmas ou tinham começado ou terminado no Largo de São Francisco e eram no máximo 200 alunos. Duas turmas pela manhã (turmas A e B de 07 às 12h, de 2ª a sábado), duas pela tarde (C e D, de 13 às 18hs). O curso duraria 5 anos, 30 horas de aula por semana! 399 homens e uma mulher (a colega Silvéria que veio a se formar em Eletrônica)
Nos dois primeiros anos só sabíamos que seriamos “engenheiros”. A escolha da especialidade (civil, elétrica, eletrônica, mecânica, metalúrgica ou naval) se dava ao término do segundo ano.
Fazia dois anos escassos que um governo militar se implantara no Brasil (abril1964). O governador do Estado da Guanabara era o competente e controverso Carlos Lacerda. O mundo parece que se dividia entre os ditos esquerdistas (partidos comunistas, e populistas) e os ditos de direita (militares, conservadores e “lacerdistas”). Como sempre, também havia os fisiológicos que se amoldavam a qualquer coisa e, como um câncer, acabam predominando. Era uma época ideologicamente pulsante. Quase todos tinham suas posições politico-ideológicas e discutia-se tudo “intelectualmente” falando.
Para os calouros uma série de novidades, mitos, engodos. Aula sobre “vetores curvos”, ministrada por um veterano mais idoso, com tamanha competência que era anotada a sério por muitos, com “dever de casa” e tudo. Professores que, diziam os veteranos, eram um terror: reprovavam por pura implicância! Eram o Rangel e o Oswaldo “Bola Quatro” em geometria descritiva, o Fuad Nassim Mellem em Química, o Radival em cálculo infinitesimal (sobre esse escreverei um artigo a parte), os 4 mosqueteiros de “física”: Madruga, Aimone, Ilmar, e Maia, vulgo Kid Palavrão), Andrade Ramos e Francisconi em geologia, Zezinho “mijadinha” em cálculo vetorial, e outros menos votados.
O diretório acadêmico, para variar, ocupado pela turma da esquerda, se não me engano o presidente era um tal de Balinha (Aderbal?). Poucos já se conheciam (colegas de colégio, de cursinho vestibular) mas, rapidamente, amizades que persistem até hoje (2017, 47 anos depois), ali se iniciavam (sabe-se que amizade é um tipo de amor assexuado, começa com um sorriso, um olhar, uma palavra e vai se firmando).
No início da segunda semana de aula, num intervalo, um grupo do diretório acadêmico adentrou nosso anfiteatro no “bloco A” e mediante um discurso rápido de que precisávamos nos organizar para não sermos “manipulados” pelos professores e pela direção da escola, passou a comandar uma eleição de “representante de turma” (já com uma sugestão, que era um ex aluno do colégio Pedro II que eu conhecia de vista da politica estudantil do nível secundário AMES e identificava como da “pelegada comunista”). Um grupinho imediatamente se opôs e, para minha alegria e surpresa 90% da turma apoiou. Para não correr o risco de que num momento de descuido se elegesse um “teleguiado russo” precisávamos escolher um representante naquele momento.
Os olhares vasculhavam uns aos outros e lembro de ter apontado como candidato um colega que ainda nem sabia o nome, com quem havia trocado umas dez palavras na véspera e que parecia também não concordar com a imposição “goela-abaixo” pelos “estudantes profissionais” e político-profissionais do diretório, da confraria de esquerda. Daquela conversa de 10 palavras, sabia que era do interior do estado e estava residindo no “aloja” (alojamento de estudantes, na própria ilha do fundão, no prédio onde hoje é o COPEAD). Ninguém ia residir no “aloja” porque queria, era porque precisava. Foi eleito e reeleito nos anos seguintes e até a formatura na turma de eletricistas (eu fui fazer civil). Era o Renato Ribeiro Abreu.
Continuando as reminiscências, havia rituais e um roteiro de tradições a serem apresentados aos calouros. Que eu me lembre, em 1966 praticamente não houve trote. Mas houve duas “peladas” (jogo de futebol calouros-e-veteranos com “juiz ladrão” comprado pelos veteranos).
A primeira foi num sábado pela manhã, em abril, no campo de futebol do fundão, ao lado do prédio da Arquitetura (hoje arquitetura e reitoria). A coisa complicou para os veteranos porque, sendo a primeira vez que havia 400 calouros dos quais compareceram uns 300, os veteranos não levaram isso em conta e, de repente se viram em franca minoria (30? 50?), o que acalma muito a “valentia” de certos “babacas” que transformam o que seria uma brincadeira em válvula de escape de recalques ou mentes doentias. A única extravagância que houve foi, no intervalo do primeiro para o segundo tempo, no vestiário, exibirem aos calouros o, digamos, “instrumento” do veterano conhecido como Tripé que, muito constrangido (era um boa praça e boníssima pessoa) se deixou despir por um outro veterano babaca para “ameaçar” passar aquela “espada” nos calouros que insistissem em ganhar o jogo. Registro aqui como uma homenagem, que o nome do Tripé era Mário Prata que 5 anos depois era um dos desaparecidos políticos (infelizmente para sempre).
A segunda pelada era a mais tradicional, levada a efeito no dia 13 de maio, dia da “libertação dos escravos”, quando, teoricamente, terminava o período em que os calouros estavam sujeitos aos caprichos dos veteranos. Era marcada para a noite no largo de São Francisco, no centro da cidade, tendo a estátua de José Bonifácio como juiz. O “gol” dos calouros a rua do Ouvidor. O “gol” dos veteranos uma janela (fechada) do 2º andar do antigo prédio da nossa “Escola Politécnica” (depois Escola Nacional e Engenharia). A diferença numérica da primeira pelada repetiu-se com menos diferença mas ainda assim havia cerca de 3 calouros para cada veterano. Com o agravante de que o estado etílico geral era avançado.
Face a supremacia numérica dos calouros, ao cabo de meia hora de tanto atirar a bola contra a tal janela, consegui-se encaçapa-la: quebrou o vidro e caiu dentro do prédio!
Calouros 1 x Veteranos 0. Parodiando nosso recente guia nacional, “nunca antes na história” dos confrontos os calouros tinham conseguido fazer um gol, muito menos estar vencendo!.
A turma de veteranos aborrecidíssima (e bêbados pois todos estavam bebendo, calouros e veteranos indistintamente), encheu-se de brios, confabularam e traçaram uma estratégia surpreendente para não perder o jogo. Um deles, creio que foi um do 3º ou 4º ano chamado Décio Lefèvre (da “COMENE”, que era o grupo politico de Direita) foi buscar seu carro (um Chevrolet BelAir importado e não muito novo mas um sonho para qualquer um de nós, e adentrou o campo (o Largo de São Francisco, lembrem-se) em velocidade, freou cantando pneus, enquanto uns dois ou três veteranos (da “CI”, que era o grupo politico de esquerda) que haviam ido buscar a bola no 2º andar (deve ter sido humilhante) entraram no carro e o Décio, em disparada, milagrosamente sem atropelar ninguém, entrou pela rua do Ouvidor com a bola e o pessoal da “CI” dentro do carro. O “juiz” apitou gol, o Décio deu ré até o centro da praça, novamente sem acertar nenhum calouro, embora tentando (Deus protege os bêbados tanto passivamente quanto ativamente, foi o axioma que ficou). O “juiz” apitou de novo o Décio acelerou outra vez entrando na rua do Ouvidor com a bola dentro do carro, o juiz marcou outro gol e deu a partida por encerrada, até porque a polícia acabava de chegar e, de repente, todo mundo sumiu. Afinal estudante na época era sinônimo de subversivo, fosse de esquerda ou direita. A policia e os militares primeiro batiam e depois perguntavam (quando perguntavam)... muita gente ficou esquerdista com esse procedimento.
Na dispersão, eu e um grupo (lembro do maranhense Rogério Nogueira Santos que ganhou o apelido de “Qualira”, do Zé Eduardo Moreira, do Narciso Lopes, do Almir Mansur, , do Amauri Cunha, o Celso Loureiro, do Wellington Guidorizi, o “Pirita”, enfim) ainda ouvimos: “_encontrar na Praça XV!_” Isso significava o famoso bar Real Astória (seria esse o nome?) junto à estação das Barcas no então Mercado Central (era uma estrutura metálica que não existe mais e ia das barcas até o aeroporto Santos Dumont, sobrou um resquício que é o restaurante Albamar). Alí, sob o viaduto da perimetral (que já existia e hoje não existe mais durou menos do que 50 anos!), também fazia ponto uma carrocinha que funcionava 24hs servindo um mingau de milho com uma espécie de carne picadinha muito temperada: o Angú do Gomes.
Chegando lá, os “viados” dos veteranos de esquerda e de direita comemorando o 2 x 1 sobre os calouros... Não fizemos nada porque alí estávamos em minoria. Enquanto os veteranos tinham dinheiro para sentar, tomar chope e comer “testículos fritos na chapa” (culhões de boi era o tira-gosto famoso do bar), nós, os calouros, em pé, comíamos um angú com cachaça... alguns, outros nem isso. Tinha passado da meia noite. 14 de maio! Não éramos mais calouros, ou ainda éramos? Será que ainda somos? Quem são os veteranos de sempre?
Cont.:
e o outro, muito idealista, entrou na luta armada e acabou torturado e morto - ambos boas pessoas, mas trilhando caminhos bem diferentes.
Foi um privilégio termos vivido aqueles tempos e compartilhando com aqueles companheiros.
Crônica que me trouxe gratas recordações, já que sou da turma que entrou em 1967 e formou na UFRJ 1971.
Morei no Alojamento e convivi com Renato Abreu e Mario Prata, sendo que um se tornou empresário bem sucedido e o outro, muito
Bonitinha historia