Era fins dos anos 1980, o casamento não ia bem, ambos na faixa dos 40 a 50 anos de idade, ambos já não se respeitando como deveria ser, mas com três filhos, o menor ainda com 3 anos, iam levando, meio sem saber o que fazer. Era evidente que alguma coisa ia acontecer ou estava acontecendo. Quem já passou por isso entende.
Lá pelas tantas, êle percebeu que algo era real, ela parara de reclamar de tudo, às vezes ficava até simpática como fôra, havia mais de dez anos, quando casaram.
Foi uma carta anônima, datilografada e endereçada a êle, que confirmou as suspeitas. Ficou a noite toda sem dormir com o orgulho e a vaidade feridos, estava sendo chifrado.
Foi racional e resolveu não fazer nada, por dois motivos: a> precisava confirmar, uma carta anônima podia ser só fofoca, b> precisava tempo para pensar e se preparar para confusões, que alguns conhecidos já haviam passado.
A primeira parte foi fácil, orientado por um amigo chegado às coisas eletrônicas, plantou umas escutas nos telefones de casa e em menos de uma semana a carta anônima estava confirmada, em quem, quando e onde. Mas resolveu continuar não se dando por achado, um pouco para conhecer melhor a mães dos seus filhos, um pouco se divertindo com a situação, um pouco com a consciência aliviada por não ser o detonador do problema.
Mas muito aborrecido em se sentir chifrado, culturalmente falando não estava preparado para isso. Êle chifrar, uma vez ou outra e aleatóriamente, tudo bem, mas ser chifrado e especificamente por um só, ou seja, propriedade, habitualidade, afeto, não entrava em seus conceitos e preconceitos, doía muito, a vergonha e o orgulho feridos. Pior seria quando todos soubessem. Resolveu seguir calado. Foi nessa altura que, não aguentando mais sozinho, me botou a par das coisas.
Passados uns 30 dias mais, ela senta-se ao seu lado, muito gentil e começa a discutir a relação. A famosa “DR” que nunca tinham feito. Depois de meia hora que lhe pareceu uma eternidade, ela propõe se separarem. Êle pergunta se existe outro, ela nega, jura fidelidade por todo o sempre, etc e tal. Êle continua sem dizer que tá sabendo, etc. e tal. Aproveita para ir comendo a cachorra agora já como amante-cliente da putinha, sentindo que o corno passa a ser o outro, e até percebe que, com uma certa falta de respeito, o negócio melhora e ela até o procura, o que não fazia há tempos. Como são as coisas, pensa.
Começam a discutir a divisão de patrimônio, que era todo oriundo do pai dêle, mas que ela dizia merecer a metade, também trabalhava, ia ficar com as crianças, tinha sido uma mulher fiel, etc. e tal, que não fazia questão da casa na capital, nem da do Guarujá. Claro, o outro, que era um colega de trabalho dela, êle até conhecia o FDP, também casado, também com filhos, não ia querer ou intuíam que seria demais para o nosso amigo. Quanto mais os assuntos evoluíam, mais êle se perguntava: “porquê que eu casei com isso?” (Dicró).
Mas manteve a frieza. Anunciou que precisava de um tempo para pensar e foi passar uns 30 dias fora, sòzinho, natal e virada de ano incluídos.. Lembro que me ligou lá de onde estava e não me disse onde, para saber como iam as coisas por aqui. Eu tive que aparecer lá no Alto de Pinheiros, procurando por ele, como quem não quer nada.
Voltou dizendo que foi bom tirar aquele mês sabático, que organizou as idéias, que encontrou um atenuante: ela tinha optado pela iniciativa, então as culpas ficavam todas com ela. Mas que continuava extremamente incomodado com o chifre, a traição. Quando tudo viesse a público, que vergonha, que humilhação.
Embora advogado, resolveu ir ver um colega de faculdade chamado Dernier Rosado, nunca esqueci desse nome, especializado nas Varas de Família, para se antecipar aos temas que certamente iam surgir. Me levou junto, como amigo, confidente e motorista. Chegamos na residência do colega, uma bela casa no Alto da Boa Vista, e começamos a tomar uísque na beira da piscina.
Começou contando a situação, desde o início, mas a narrativa não estava linear e havia uma certa dificuldade em entender a estória. O colega percebeu que ele estava muito emotivo, cabisbaixo, triste, mas intuiu tudo e saiu-se com essa:
_ Antônio, deixa ver se eu entendi: Passar a mulher pra trás é fácil, o difícil é passar adiante, mas você conseguiu... Tá chateado com o quê?
Nosso amigo, que estava com o copo nos lábios, tomando o uísque e havia posto uma pedra de gelo na boca, ficou uns 5 segundos paralisado. De repente começou a rir e, sem querer, cuspiu a pedra e o bocado do uísque da boca. Lembro perfeitamente da pedra voando, batendo no chão e indo parar na piscina.
Eureca! Fez-se a luz! Antonio renasceu.
Rimos os três. Muito.
E comemoramos a “libertação” do amigo, ali, naquele momento. O resto do divórcio ia ser moleza pra êle. E foi.
O Dernier devia ser psiquiatra, não “adevogado”.
Miguel Fernández y Fernández, engenheiro e cronista, dez2020
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Esse blog tão bem escrito parece um conto inglês, bem humorado, um pouco satírico.
Tem um cara chamado P.G. Woodhouse (ou algo assim) especialista nesses contos. Você vai gostar. Rir das situações esdrúxulas de nossa vida e às vezes de nós mesmos faz parte do bem viver. A amargura e a raiva, que seriam digamos, naturais, foram passadas pra trás. Pelo menos é o que parece. Esse cara é um campeão.
Viver é muito difícil mas a outra alternativa é horrorosa. Casamos apaixonados, sem nos conhecermos minimamente e mais tarde vamos ter que lidar com aspectos de uma pessoa que julgávamos não existir, se é que sabíamos que aquilo existisse.
È, a vida não é para os amadores. Forte abraço…