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Vade Mecum, parte 1

  • Foto do escritor: Miguel Fernández
    Miguel Fernández
  • há 18 horas
  • 4 min de leitura

Quando conseguiu chegar ao curso universitário, optou por cursar engenharia, para ser o mais próximo do que lhe parecia ser um “operário” de nível superior. Um trabalhador.

Tinha um “quê” político nisso, pois os colegas do colégio, eram de nível sócio-economico acima do seu e percebia que havia um proselitismo nas “orações” que faziam a favor dos proletários, dos ditos “menos favorecidos”.

Quanto mais os colegas se propunham a defender a posição A, mais se comportavam como B, mas com a consciência leve, pelo discurso-rezas que faziam. A conversa de “trabalhador intelectual” lhe soava falsa e conflitante com o discurso a favor dos trabalhadores, agrícolas e industriais, da foice e do martelo. Os que suavam, sujavam pés e mãos.

No fundo, queriam mesmo ganhar a vida em burocracias e planejamentos, em prédios com ar condicionado aqui, e lareiras no frio, onde iam fazer seus infindáveis estudos, financiados pela família ou por bolsas conseguidas em confrarias ou onde milionários abatiam seus teóricamente “distributivos” impostos de renda. Como entendia que esses comportamentos, atitudes e opções, digamos, “aristocráticas” dos colegas nem era consciente, se permitia conviver com eles numa boa.

Foi levando a vida e uns dez anos depois de formado em engenharia cruzou com alguns daqueles colegas do tempo do colégio e não gostou do que viu e ouviu, os colegas cada vez mais alienados-militantes, cada vez se achando mais defensores dos pobres e oprimidos, cada vez se achando mais donos das soluções sociais sem se dar conta da hipocrisia e utopia do que diziam.

Percebeu que lhe faltava alguma coisa na sua cultura para poder até entender e se expressar no contexto, pois ao ter-se refugiado na parte operária da sociedade passou a ser produtor, subserviente na mão dos “novos capatazes” agora chamados administradores, economistas, sociólogos.

Um dia, até um novo advogado da empresa em que trabalhava, na falta de melhor argumento, disse-lhe que, não teria razão, porque não entendia nada de “direito”. Não gostou.

Embora entendesse que a sociedade precisa ter uma “dura lex sed lex”, achava que razão é uma coisa, leis, procedimentos, são outra coisa. Gostava de dizer que, pelas leis, as mulheres não podiam votar e ter escravos era “da lei”. Aliás, infelizmente, em alguns países e culturas continua sendo assim. O tal do direito “consuetudinário”, das sociedades primitivas, das pessoas de mentes mais simples, ou das mais necessitadas, mais sujeitas à catequização.

Resolveu que iria tentar o “vestibular” de novo e cursar “história” ou “direito” (laws) e tentar entender melhor o processo do “manda-quem-se-organiza” e obedece quem, ao se dedicar à produção, não tem tempo para outra coisa, além de produzir e pagar impostos.

Como gostava de ler e de cultura geral, seria uma boa. Foi lá, e passou para sua primeira opção, a melhor faculdade de direito da sua cidade. Como precisava trabalhar, o tempo que lhe restava era à noite, se inscreveu no curso noturno.

Era 1979, o novo presidente, empossado em 15mar1979, o General Figueiredo, tendo como chefe da casa civil o general Golbery do Couto e Silva (que já vinha nesse cargo, desde o governo anterior do presidente general Geisel). O Golbery era tido como o grande articulador dos bastidores da política-ditadura brasileira com o apelido de “bruxo”.

Nos cerca de 40 colegas dessa turma noturna, sua idade era intermediária. Grosso modo, a turma da noite tinha os e as jovens, que precisavam trabalhar para viver, tinha muitos(as) que, tardiamente, se permitiam ousar o nível universitário, para ascender na carreira e tinha também  outros cujo interesse era simplesmente passar a ganhar mais na aposentadoria quando o empregador era o Estado (civis e militares).

Cursando direito para ser advogado, por vocação, poucos. As carreiras do judiciário, além de dar poder e prestígio, já pagavam acima do mercado médio, portanto havia também os que queriam fazer algum concurso, fosse para promotor ou defensor público, juiz, enfim, meros candidatos a burocratas.

A turma logo se deu conta que aquele colega era e queria continuar engenheiro, fazia o curso por diletantismo, cultura geral, não seria concorrente nem adversário. Se “enturmou” facilmente, encantado com metade dos professores e horrorizado com a outra metade. Dizia a quem quisesse ouvir, naquela escola, estavam os piores e os melhores professores que conhecia.

No início do segundo ano (3º período) a turma tinha se dado conta de que alguns professores não admitiam dialogar nem ser contestados, e “perseguiam” quem ousasse, precisavam ser enfrentados. Em um dia que faltou à aula, foi eleito representante de turma, não sem o protesto de um colega que queria o cargo, assunto rapidamente acomodado. Claro que foi porque, sendo aluno diletante, podia se expor mais.

Foi o que aconteceu, teve que encarar brigas com os lamentáveis professores de “Sociologia do Direito” e o de “Direito Político”. Daquela turma de colegas só tem boas lembranças.

Em algumas matérias importantes os professores não o marcaram, por exemplo “Teoria Geral do Estado”. Mas três professores o marcaram muito, parte pelos assuntos, parte pela cultura geral, parte pelo conhecimento e experiência no que transmitiam e, os três, pela dedicação: o Maurice Assuf (advogado privado) que lecionava História do Direito Nacional, o Celso Albuquerque Melo (juiz do Tribunal Marítimo) que lecionava Direito Internacional Público e tinha um excelente livro a respeito, e o Antonio Vicente da Costa Jr. (policial e, na época, Diretor do DESIPE, o sistema penitenciário estadual) que lecionava Direito Penal. Os três aparentando estar na faixa etária entre 50 e 60 anos. De cada um lembra um “causo” que conta em outras crônicas com o mesmo “caput”: Vade Mecum (partes 2, 3 e 4)

Saiu no inicio do 4º ano da faculdade de direito (hoje 7º período), ao constatar que o Direito Adjetivo (direito processual) passou a predominar nas aulas. Para quem queria cultura tornou-se desinteressante.

Dos 3 anos que passou na faculdade de direito concluiu

Ø  No direito o Interessante é o Direito Substantivo, mas raramente funciona, raramente dá dinheiro e raramente é reconhecido (e quando é, é postumamente ou quase)

Ø  qualquer ramo do conhecimento pode ser interessante e tornar-se fácil,

Ø  havendo gente cativante e disposta a ensinar sem ser só pelo salário do fim do mês, é mais fácil e mais rápido interessar-se

Ø  tudo é interessante, navegar é preciso, conhecer também é preciso.


agradecimentos ao colega Paulo Ramalho pela ajuda em algumas reminiscências, saudades do Guido, do Onésimo, da Clara, da Solange, do Edgar, da Elaine, da Joanes, do Último, fica o registro


Miguel Fernández y Fernández, engenheiro, cronista e articulista, membro da Academia Nacional de Engenharia e do Instituto de Engenharia # escrito em 2024nov/dez R2025dezRd,  6.470 toques

 
 
 

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