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  • Foto do escritorMiguel Fernández

Anselmo Paschoa

Atualizado: 26 de jun. de 2023

No país do futebol e do carnaval, o negro que escolhesse física nuclear como área de atividade já seria uma afronta ao lugar comum dos preconceitos hoje vigentes. Inclusive ao que chamo de preconceitos reversos, aqueles que enxergam preconceito até onde não existe, por puro preconceito, só para ficarem bem na foto ou a justificar porque não encaram desafios intelectualmente maiores. Acusar os outros daquilo que se tem medo descubram em nós, é a tática de que a melhor defesa é o ataque.


Negros professores? Em colégios zona-sul do Rio? Ora devem ser professores de educação física ou de trabalhos manuais, talvez percussão em música! Tem gente que pensa assim e tem gente que acusa os outros de pensar assim antes que descubram que ela pensa assim... O fato é que só comecei a ter consciência de que havia preconceito de cor quando comecei a notar que era assunto doutrinário em certos círculos intelectualóides que frequentava. Quanto mais branquinho o grupo, mais defensores dos negros. Enchiam a boca sem se dar conta do preconceito embutido que extravasava nas atitudes e nos discursos. Já estava com cerca de 16-17 anos. E os negros precisavam de defensores? E atenção: negro não é preto? e preto será negro? Mas os alunos eram todos branquinhos, não lembro de pretos nem no Andrews nem no CAp, só na escola pública.


Já estava com cerca de 16-17 anos e me perguntava: “os negros precisavam de defensores”? Não me parecia, creiam ou não, lá em casa era uma família de imigrantes europeus e olhávamos os pretos como iguais (Nell, amiga de mamãe e as filhas Fernanda e Sueli que o digam). O problema / preconceito era de classe social e, aos poucos foi se transformado em preconceito de cor. Que maldade fizeram sem se dar conta ou querendo parecer bonzinhos. Na prática, era mais uma humilhação: os pobres que eram pretos “precisando” ser defendido por branquelas burguêses mimados, novos-ricos metidos e pseudo-intelectuais querendo ser aceitos em algum círculo gauche. Lamentável.


Enquanto isso, o negro Maurício Silva Santos era considerado o melhor professor de geografia do Rio (colégio Andrews e Aplicação da UFRJ). Os irmãos Rebouças, engenheiros no início do século XX, Machado de Assis nosso literato mais proeminente, Theodoro Augusto Ramos (1985-1935), engenheiro e matemático com carreira no saneamento em São Paulo e na Bahia, todos negros, todos destacados profissionais e intelectuais. Porque não eram mais? Porque alguns círculos começaram a tratá-los como coitadinhos, atrapalhando a auto-estima que todos precisamos ter. Ou era inveja? Afinal havíamos acabado de conquistar a copa do mundo de futebol (1958), destacando-se o negrinho Pelé, e o elegante preto Didi (sem esquecer do Djalma Santos), junto a outros 8 de variados matizes, que passaram a ser os estereótipos da raça brasileira pelo mundo afora. Preconceitos zero.


O professor Anselmo era negro, formado em física pela Faculdade Nacional de Filosofia Ciências e Letras (FNFi) da UB (Universidade do Brasil, hoje UFRJ), estimo que por volta de 1955 a 60.


Quando o destino me deu a sorte de cruzar com êle, ou seja, quando o conheci, lecionava física nos 3 anos dos curso “científico” (colegial) e didática nos cursos de professorandos, inerentes aos colégios “de aplicação” (CAp). Dessa forma, acabou sendo meu professor de física por 3 anos: 1963, 64 e 65. Aprendi física para sempre e guardo com carinho os livros didáticos que adotava (PSSC) e que recomendava (Gamow). Certamente foi um dos influenciadores a que escolhesse a profissão de operário com diploma de-engenheiro. Era tão dedicado que uma vez reuniu a turma, ainda no 2º científico, em seu apartamento na Gávea, com sua esposa, para confraternizar e nos entusiasmar com as carreiras de produção de conhecimento de vanguarda técnica, a seu ver o único caminho para sairmos do subdesenvolvimento.


Mas o episódio mais marcante que tive com o Anselmo, nem foi da matéria de física, mas sim de formação de caráter, postura, ética, lógica de vida. Foi no início do terceiro científico. Ele lecionava 5 a 6 horas de aula por semana, pela manhã no CAp (entre 7h30-12h15, de segunda a sexta). Talvez lecionasse em outro colégio à tarde como todos costumavam fazer.


Nossa rotina era, além da manhã no CAp, à noite, de 18h30 às 22h30 o “curso pré-vestibular”, ou seja, cursos que preparavam os alunos para as provas de seleção para as universidades (quase todas estatais), e os respectivos cursos de engenharia e de medicina, com muito mais candidatos que vagas. Chamavam-se “cursinhos” e reuniam os mais famosos professores disponíveis no mercado. As aulas eram verdadeiros shows de conhecimento do assunto, das manhas das “provas”, de didática e de motivação.


Ao cabo de um mês de aulas, tentando fazer o 3º colegial pela manhã e o cursinho à anoite (curso vetor), para “não perdermos um ano de nossas vidas”, como se dizia, estávamos muito aborrecidos, pois essa rotina não dava margem para mais nada além de estudar: nada de praia, de “paqueras”, namoros, esportes, cinemas, enfim, como dizia um professor no cursinho, com um sorrisinho sádico: “este ano os alunos devem estar voltados apenas para a ciência”.


Resulta que nossa turma do CAp se reuniu e escolheu um representante para pleitear ao Anselmo e outros professores, que fossem menos exigentes no colégio para não termos que estudar tanto pois nossa obrigação, e objetivo prioritário era passar no vestibular.


O Anselmo ouviu tudo pacientemente, com a mão no queixo como costumava fazer, pensou um pouco e disse que a obrigação e objetivo dele ali era nos ensinar física, segundo um programa pré-estabelecido e nos aprovar se aprendêssemos e nos reprovar se não aprendêssemos e, nesse caso, reensinar no ano seguinte até que fossemos considerados aprovados em Física no colegial, portanto dados como aptos a um passo seguinte.


Rápidamente o diálogo com o representante da turma derivou para uma DR (Discutir a Relação) e todos começaram a falar e cada um expor argumentos. Lá pelas tantas o Anselmo disse que não entendia por que olhávamos para o vestibular como obrigação e objetivo.


Alguém se entusiasmou e retrucou que era uma obrigação sim, perante nossos pais, perante nossa família, perante nossas namoradas, perante nossos amigos, perante a nação pois estávamos estudando em colégios públicos, e era o que a sociedade esperava de nós, precisávamos ajudar o país, etc. e tal, blá blá blá...

O Anselmo ouviu com a paciência dos santos e, numa lógica irretocável, respondeu aos nossos tribunos:


_ Perante seus pais, sua família, sua namorada, seu periquito e tal, OK, agora perante a Nação? Perante o País? Não tem nada a ver. Para a nação, para o país, existe um número de engenheiros e médicos que, anualmente, a sociedade precisa ou que está disposta a pagar por isso, que são as vagas do vestibular e essas vagas vão ser preenchidas por alguém, e esse número de profissionais vai se formar. Sejam vocês ou sejam outros...


Diante de tamanha lógica e realismo, pensei com meus botões: melhor parar de reclamar e ir estudar. Abandonei a demagogia ali. Acho que foi a reação da maioria lúcida. Passamos todos no vestibular, somos bons profissionais e bons cidadãos e devemos muito disso ao grande Anselmo.


Anselmo Salles Paschoa (1937) depois do CAp foi professor de física na PUC-Rio (Universidade Católica), faleceu em 26mar2011, durante uma reunião em São Paulo da SBF (Sociedade Brasileira de Física), da qual foi sócio por muitos anos, cujo assunto era a CNEN - Comissão Nacional de Energia Nuclear onde já havia sido Diretor. Tinha os graus de MSc e PhD pela NYU (New York University 1971-75), tendo sido um dos precursores da “radioecologia”. Publicou diversos artigos, participou de diversos encontros internacionais em física nuclear e teve seu obituário publicado em diversos países. Me orgulho de ter sido seu aluno, me entristece não te-lo visto mais vezes. Entretanto pouco antes de seu falecimento tivemos uns 5 longos encontros para organizar um grupo de pessoas com ideias convergentes. Ele sempre assertivo, sempre ensinando, orientando, esclarecendo. Conversei muito com êle, sempre aprendendo. O último encontro foi em 05set2010, no “Rincão das Jaboticabas”, em Araras, Petrópolis, com a presença também do já citado Mauricio S Santos e do anfitrião Emilio M y Lopez.


Miguel Fernández, engenheiro e cronista,

escrito em 2017 / 2023, 8.100 toques




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