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  • Foto do escritorMiguel Fernández

Como temperar uma salada

Atualizado: 26 de fev.

Meu pai era uma camponês semi-alfabetizado, oriundo de Orense, na Galícia, Espanha, que emigrou por volta do ano de 1930, com cerca de 19 anos.


Saiu (e chegou) clandestino, como tantos outros, tentando não se envolver na então já previsível guerra civil espanhola. As tropas, tanto as falangistas quanto as comunistas passavam pelas aldeias rurais recrutando o pessoal em idade de serviço militar. A notícia corria na frente, as famílias juntavam o “dinheirinho” que conseguiam e o jovem ia para o porto de Vigo, tentar embarcar no navio que conseguisse. O que meu pai conseguiu parece que ia para Buenos Aires mas o “dinheirinho” só dava para chegar até o Rio, ou ele preferiu desembarcar aqui e ficar com um “restinho” (imagina, pesetas, aqui naquela época!), nunca soube direito.


Assim como outros conterrâneos dele, com historia semelhante, eram pessoas duras, rudes, muito trabalhadoras, persistentes e, embora com muito pouca educação formal, de extremo bom senso e lucidez. Até porque quem não fosse assim acho que não sobreviveu para a gente saber.


Minha avó materna era outra galega por aqui em circunstancias parecidas, analfabeta na prática, mas viera por volta de 1915 procurando oportunidades que a Europa não oferecia.


Embora com pouca instrução, ou até por isso, eram pessoas que admiravam muito a “sabedoria”! A “sabedoria” possível para eles eram os aforismos (“ditados populares”, “frases populares”, exemplos), frases curtas transmitida verbalmente. Para eles, e para muitos era e é a cultura possível.


Quantas “frases” não ouvi repetidamente em toda minha infância:


· “Não há mal que sempre dure nem bem que não se acabe”,


· “quem fala uma língua, vale por um, quem fala duas, vale por dois, quem fala três, vale por três...”

· “mentia sempre, o dia que o assunto era sério, ninguém acreditou...”

· “quem fala muito diz muita bobagem”

· “uma palavra vale um ouro, um silencio dois ouros”

· “o segredo é a alma do negócio”

· “lealdade é fundamental”

· “muito ajuda quem não atrapalha”

· “Deus ajuda quem cedo madruga...”

· “boas contas fazem bons amigos”


Enfim, são frases mais ou menos comuns, simplificadoras, tidas como “sábias”, muito usadas nas “pregações”, nos discursos, nas doutrinações, nas catequeses politicas ou religiosas.


Mas há um “aforismo” que papai me contou algumas poucas vezes, sempre caindo maravilhosamente ao que ele queria dizer, que nunca ouvi em nenhuma outra fonte e que eu quero aqui compartir por me parecer genial:


PARA TEMPERAR UMA SALADA SÃO NECESSÁRIAS TRÊS PESSOAS”.


E calava. Esperava eu perguntar “_porque?”. Então explicava:


_Uma para botar o vinagre, outra para o azeite e finalmente outra para o sal.

E eu perguntava de novo: _ porque não pode ser uma só pessoa fazendo as três coisas?

E ele:

para a salada ficar bem temperada, são necessárias três pessoas porque:

· uma tem que ser econômica (avara, pão-dura, autoritária?) para colocar o vinagre,

· uma deve ser generosa (mão-aberta, perdulária?) para colocar o azeite e

· uma pessoa deve ser equilibrada (justa, não facciosa?) para colocar o sal.


E, concluindo com um olhar maroto de “te peguei”:


como ninguém tem sequer duas dessas características ao mesmo tempo, são necessárias três pessoas.


Em quantos episódios queremos que assuntos complexos ou que requerem habilidades distintas sejam bem resolvidos por uma só pessoa ou um só grupo? A maioria nós mesmos. Não nos damos conta desse detalhe.

É uma lição de sabedoria. Consciente de que o mundo, tanto no plano macro, como no micro, pessoal ou profissional, é sempre uma salada que para ser bem temperada não se deve agir sozinho nem acompanhado só de um tipo de pessoas ou de um só ponto-de-vista ou de postura.

E não me venham com o politicamente correto: para que as coisas aconteçam, é necessário ser gentil, democrático, diplomático, mas sem os rudes (alguns até grossos), os objetivos, os focados, os que pensam nas gerações futuras e não só no imediatismo, sem esses também não se vai a lugar algum. A sabedoria é buscar o “mix” que se precisa, impossível de alcançar com uma só facção ou pessoa.


Miguel Fernández y Fernández, engenheiro consultor e cronista, 2019jun10

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