Taxistas, a 4ª tribo
Era junho1976 e, desde o início de janeiro, Fernando vivia na Casa do Brasil (uma residência para estudantes), no Campus da Universidade Complutense, em Moncloa, Madrid, enquanto fazia um curso de pós-graduação. Por volta de março ali também se hospedou a Laís, jovem funcionária da Receita Federal do Brasil, fazendo um curso de “aduanas” em um convênio com a alfândega espanhola. Nessa época, eu também morava lá, onde conheci os dois.
Um lugar comum nas conversas era como aproveitar a estadia na Europa para conhecer a região, outros países e culturas. Uma das obviedades era aproveitar as férias escolares que, grosso modo, são de 01jul a 30set, com todos tentando tirar férias em agosto. Portanto em agosto, nem pensar.
Os poucos brasileiros que estudavam na Espanha tinham um perfil sócio-cultural semelhante e procuravam uma parceria para viajar, dividir despesas e terem companhia. Viajar naquela época não era barato nem fácil como hoje em dia, 40 anos depois. Além disso, quando se comprava o bilhete de avião ida-e-volta por mais de três meses pagava-se a chamada “tarifa cheia” o que, embora fosse muito mais caro, dava direito a umas 8 paradas. Por isso se comprava a passagem para um destino o mais longe possível, pois o preço era quase o mesmo e depois se montavam as escalas. O mais comum era comprar destino Grécia.
O Fernando tinha uma ideia fixa: ir a um país da “cortina de ferro” para conhecer o comunismo real. Na época isso era muito complicado, o Brasil não mantinha relações diplomáticas com a maioria desses países (se é que mantinha com algum).. Portanto, não havia como tirar um “visto de viagem” para lá no Brasil, só no exterior, com o agravante de que se você voltasse com um carimbo no passaporte de haver estado na tal “cortina” provavelmente iria passar por algum interrogatório, no mínimo.
A Espanha era um país curioso, saindo de um regime falangista-franquista ditatorial de 40 anos (Franco morreu entre o Natal e o ano novo de 1975), anti-socialista-comunista, era tolerante com os países da cortina de ferro e antipatizava ostensivamente com os americanos e russos (nisso fazia boa dupla com o francês general DeGaulle). Também tinha censura, mas só nos audiovisuais de massa (rádio, televisão, filmes e jornais diários). Nas livrarias e lojas de discos, podia tudo.
Então Madrid tinha quase todos os consulados, talvez com a exceção da Rússia, por causa da história do “ouro de Moscou” (*01). Aproveitando disso, o Fernando já tinha se inteirado de tudo e decidido ir conhecer Praga, capital da Tchecoslováquia (na época um só país), que lhe parecia reunir a maioria dos atrativos político-culturais-filosóficos que buscava. Já sabia até que os consulados desses países, cientes das dificuldades dos brasileiros, davam os vistos em uma folha branca grampeada no passaporte: acabou a utilidade, arranca e joga fora. Sem vestígio! As aduanas na entrada e na saída também carimbavam nesse papel. Outros atrativos eram a emoção do proibido, do ilegal, da transgressão! E sem ser imoral ou aético. Esses procedimentos “à-la-espião” as conversas em voz baixa, quem mais estaria ali no bar da Casa do Brasil, ouvindo e bisbilhotando? Podia ser um denunciante! Um James Bond, uma Mata-Hari!
As parcerias iam se formando meio ao acaso. Já era maio quando cada um dos dois se deu conta de que ainda não tinha resolvido sobre o que fazer nas férias que se avizinhavam.
Conversa-vai-conversa-vem, já meio em cima da hora (portanto ambos sem melhor opção), Laís e Fernando se entenderam e decidiram viajar juntos. Fizeram o resto da programação do roteiro em função dessa passagem por Praga: Madrid – Roma (com Pompéia e Capri) - Athenas (com Egina) - Viena – Praga – Berlim – Paris - Madrid, 3 a 5 dias em cada cidade. Como quase todos da Casa do Brasil naquele ano, começaram a jornada em 31mai.
Reencontrei o Fernando algumas vezes, a última em 2016, quando me contou mais detalhes dessa viagem. Me chamou atenção a história do taxista em Praga. E a conclusão, digamos, antropológica, que a dupla tirou dela. Então, por ora, vamos saltar o trecho até a decolagem de Viena.
De Viena foram para Praga em um avião Tupolev (russo). Você já voou em um Tupolev? Estilo avião militar: despojado, franciscano (em 1994 voei em um, em Cuba). Pousaram por volta de meio-dia. Nenhum dos dois falava tcheco (nem eslovaco), nem os nativos falavam Camões, Machado ou Pessôa. Saíram do avião e foram, com os demais passageiros, para o meio de um saguão. Nem bonito nem feio, nem grande nem pequeno, de certa forma lembrava o saguão do aeroporto de Congonhas-SP quando vazio, ou seja, quase deserto.
Todo mundo ali fumando (na época era assim) se entreolhando e sorrindo uns para os outros. Chegam as malas, em umas plataformas com rodas, nossos heróis vão pegar as suas (cada um viajando com uma pequena mala). Nisso, aparece um nativo com uma roupa tipo uniforme (quepe com jaleco) e toma as malas dos dois, que o seguem achando que é um fiscal da alfândega. O Fernando já provocando a Laís: _seu colega!
Quando se deram conta estavam em um taxi (dedução, pois estava escrito em tcheco). A Laís sacaneando o Fernando: lê aí, Eureca! É que o Fernando se gabava de, na Grécia, ter deduzido como ler algumas palavras porque sabia o alfabeto grego por conta da matemática: ΠΑΠΑΔΩΥΛΩΣ era Papadoulos e ЕΣΩΔΩΣ era êxodo-saída (todo restaurante tinha uma placa com uma seta e esse “hieróglifo”[M1] ). E passou a falar “eureca” a cada nova descoberta. Agora ela tripudiava: não tem “eureca”? Não sabe ler?
Mas quem-tem-boca-e-foi-a-Roma, vai a Praga também: com um, arremedo de “esperanto” ou “papeamiento” e mímica o taxista os convenceu a fazer um tour por Praga antes de deixá-los no hotel (reservado em Madrid, como condição para tirar o visto).
Praga era uma cidade aparentemente vazia de pessoas, um aqui outro acolá, e toda em tons de cinza (nisso ainda é). Acho que, embora com um sorrisinho malicioso, contou isso sem alusão ao então recente (2015) filme erótico (50 tons de cinza). Mas, nunca se sabe, afinal os dois saíram de Madrid praticamente sem se conhecer, voltaram com outra cara e, desde então já viajaram juntos algumas vezes.
Voltando ao taxi. Depois de já terem rodado bastante pela cidade, em uma esquina, em frente à rodo-ferroviária de Praga, notaram uma quantidade de senhoras vestidas de preto que chamava atenção. Entenderam que eram pessoas que estavam ali porque alugavam quartos em suas casas ou funcionavam como pensão completa por temporadinhas a viajantes. E todas se pareciam com qualquer camponesa idosa da Europa, com aquela roupa preta. Fernando não disse, mas pensou: eureca! Agora é que eu vou conhecer o comunismo real por dentro.
_ Laís, olha que oportunidade! Vamos nos hospedar com uma dessas senhoras e vivenciar o comunismo! Que experiência interessante!
E começou a entabular conversações tendo o taxista como intérprete naquele embaralhado de palavras uma de cada idioma e mímica. A coisa ia bem encaminhada quando, de repente Laís se deu conta do problema em que estavam se metendo e “surtou”:
Pó pará cuesse trem (língua nativa do sul de minas). Pópará! Sô funcionária pública, nem podia estar aqui, clandestinamente, desse jeito, mas tudo tem um limite... vamo pro hotel imediatamente.
Todo mundo entendeu o “pro hotel imediatamente”, inclusive o taxista e a senhora de preto que estava vencendo a licitação. Não houve nem tentativas de contra-argumentar e foram, em silêncio, para o hotel. Nossos heróis chegaram e se apresentaram na portaria, do Grande Hotel de Praga (ainda existe e está remodelado, estive lá recentemente). Naquela época (antes da queda do muro de Berlim em 1989), parecia que os todos os hotéis dos países comunistas tinham sido construídos antes do regime político inerente se implantar. Quem esteve em países comunistas entenderá: funcionários uniformizados e a tôa, um certo ar de pomposa decadência.
O inglês primário de ambas as partes ajudava o entendimento. Reserva conferida, pedem os passaportes, que são apresentados. O funcionário da recepção começa a preencher o formulário de hospedagem. Lá pelas tantas, pergunta: Chegaram de avião?
_Sim!
_ Onde está o carimbo de entrada da imigração do aeroporto?
_ Como assim? Ninguém nos perguntou nada, fomos saindo, pegamos um taxi e estamos aqui.
_ Sim mas o avião chegou há umas 3 ou 4 horas...
_ Fizemos um tour para conhecer a cidade...
Os funcionários pararam, fazendo cara de desconfiados, até que, se aproximou um, com cara de mais graduado e de poucos amigos e..... chamou a polícia!!!
Após mais de meia hora de acareação com a polícia, tipo serviço secreto ou polícia política, umas três ligações telefônicas (telefones de disco) e outras tantas de rádio-comunicador pelos policiais, certamente para superiores em que palavra “brazilien” (ou parecida) era a mais usada, a dupla é liberada, não sem antes levar uma bronca / ameaça, pelo menos foi o que entenderam.
Se instalaram no excelente apartamento (praticamente não havia turistas em Praga), tomaram banho e já era hora do jantar. Por cansaço, mas principalmente por um misto de precaução e receio, resolvem comer no próprio hotel. Antes do jantar, umas vodkas, que caiam bem. Entre um brinde e outro, saem-se com essa pérola da genética atropológica:
< “eureca”, não são 3 raças humanóides, são 4: amarelos, pretos, brancos e taxistas (*02) >.
Com efeito, os motoristas de taxi em todo o mundo têm algo que os irmana. Talvez um pedaço de algum DNA. Seja nas coisas boas, seja nas ruins, há algo que eles e só eles têem. Daria uma bela tese de mestrado ou doutorado nas ciências que se interessam pelos assuntos envolvidos.
Em psicologia comportamental: os taxistas são “assim” porque são taxistas? Ou são taxistas porque são “assim”?
E existe o que chamaremos de “síndromes de taxista” que se manifesta também em muita gente:
A síndrome tipo um é a das pessoas que não gostam ou não conseguem mandar nem ser mandados. Tenho certeza de que o leitor conhece muita gente com essa síndrome, mesmo sem ser taxista.
A síndrome tipo dois é a das pessoas que acreditam saber como resolver os problemas do mundo. Nesse aspecto tem umas variantes-concorrentes que são os barbeiros e, dizem, as manicures. Evidentemente, o leitor já terá pensado, também se manifesta fortemente nos economistas e administradores, e nestes de forma contagiosa (contagia os jornalistas) e perigosa, já que afeta milhões e não só os passageiros de um veículo ou da cadeira de barbeiro.
Conheci taxistas nos 4 continentes e, na minha opinião, de fato, são uma “raça” a parte. Tem gordo, magro, alto, baixo, homem, mulher, velho e novo, maus e bons, e algo em comum na mente, no jeitão. Antes de escrever esta crônica comentei com amigos e quase todos concordaram com a tese. Teve uma amiga muito viajada (Dra. X) que acha que são só os taxistas de aeroporto, mas diz que está pensando em reconsiderar e concordar com a tese aqui exposta.
Bom, vou ficar por aqui porque estou com uma coceirinha para acrescentar uma 5ª “raça”, os contadores.
Em outras crônicas registrarei mais do que me contaram dessa interessante viagem.
(*01) perto do fim da guerra civil espanhola, vendo que a derrota estava próxima, os ditos “republicanos” teriam transferido a reserva de ouro físico do Banco de Espanha para Moscou, sob o argumento de que o poder sobre o Estado seria usurpado pelos ditos “falangistas”. Não se sabe bem o que houve nem se toda a história está bem contada, havendo muita controvérsia. Parece que a Rússia alega ter recebido só parte do que se diz ter sido enviado, que compensou uma parte como pagamento de dívidas por fornecimentos durante a guerra civil, e que outra parte devolve quando a república voltar à Espanha. O fato é que o ouro sumiu.
(*02). Àqueles que se dizem politicamente corretos, o que pode ser só por causa do vocabulário, peço que ao lerem “raça” leiam a palavra que lhes aprouver. Estive pensando em escrever “tribo” mas seria só para agradar esses patrulhamentos, então resolvi registrar como era e como estão as coisas. Registre-se que, na época, era assim que se identificavam os grupos étnicos e, no que me concerne, sem nenhum preconceito.
Miguel Fernández y Fernández,
engenheiro consultor e cronista, mar2023
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