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Foto do escritorMiguel Fernández

Objetividade nos EUA (New York, 1971)

Atualizado: 16 de mai. de 2023

Foi em 1971 que conheci os Estados Unidos (*).


Não foi nas asas da PanAir, como diriam o Fernando Brant e o Milton Nascimento, mas da Braniff, que já não existe mais.


Nesse descobrir dos EUA, algumas coisas ficaram na lembrança:


a_ english lessons

por mais cursos de inglês que se faça, nada vale uma semana por conta própria em um país de fala inglesa:

_ no primeiro dia em Miami (e nos EUA), de repente você fala com a telefonista do hotel e termina com o “thank you” e ela responde “you are welcome” _ Caramba, quanta educação.... “você é benvindo”. No dia seguinte você começa a perceber que todo mundo diz isso. Não me lembrava que nenhum curso ou aula houvesse ensinado essa a saudação-reposta ao agradecimento “thank you”: “you are welkcome”.

_ e a palavra strawberry (morango) que não entrava na memória? Tinha que ler para lembrar. E o waffle que não era ueifle era uaflel mesmo? Que surpresa.


b_ padronização

“Cachorro-quente-com-molho” é “cachorro-quente-com-molho” e ponto final. Lá não existe cachorro-quente-sem-molho se não estiver no cardápio. E não adianta insistir. Vale para presunto-com-ovos e para misto-quente. Só os ovos ou só um ovo ou só presunto nem pensar. E se você quiser argumentar com o(a) atendente êle(a) simplesmente diz “next” (o próximo”), te ignora e passa a atender quem estiver na fila depois de você. Essas coisas são culturais mas também têm sua razão de ser. No balanço do final do dia o numero de fatias de pão precisa fechar aproximadamente com o numero de ovos e de presunto e o tempo gasto para customizar a venda por aquele preço não compensa ou o vendedor acha que não compensa. E o argumento é muito direto: se você acha que o correto é a seu modo, que não custa nada não botar o molho no cachorro quente, abra uma lanchonete a seu modo e vá concorrer com êle (ela).


c_ next please


a famosa loja de material de fotografia (47’st photo) onde os funcionários são todos ou quase todos judeus? não abria aos sábados e abria aos domingos, o que para nós era tão incrível quanto ter bancos para negros e bancos para brancos nos ônibus e lanchonetes, sim ainda peguei isso. Voltando à 47’photo, em um dos balcões de atendimento havia uma fila para tirar duvidas, ver e tocar no produto e decidir a compra. Em outro balcão, outra fila, para comprar: pagar e receber o pacote. Se você titubeasse na hora da compra com alguma pergunta adicional voltava para o fim da fila com o famoso “next”. As filas eram grandes pois os preços eram bons, tinham sortimento farto, sabiam explicar a parte técnica com calma. Voltar na fila era perder duas horas. E os brasileiros não se conformavam. Havia uns que queriam brigar e não voltar para o fim da fila, que foi só uma perguntinha, que retirava a pergunta... não adiantava.


d_ limpeza urbana


andando numa rua, vi um pedestre jogar no chão uma embalagem de sorvete ou algo parecido. Outro transeunte, que caminhava atrás desse, viu, recolheu a embalagem, acelerou o passo e enfiou a embalagem no bolso do primeiro. Gelei. Fingi que não vi, continuei andando, mas com a curiosidade sobre o desfecho desacelerei e fiquei prestando atenção: o primeiro quis argumentar e ouviu de volta algo como que se todos fizessem daquela forma o custo da limpeza urbana seria muito mais cara.... Os dois, mais ou menos do mesmo tamanho, ficaram meio agressivos um com o outro, mas o primeiro afinou e ficou com o lixinho no bolso....


e_ trombadinhas


em Manhattan presenciei dois assaltos tipo trombadinha, em plena luz do dia, feitos por pessoal maior de idade, tipo 40 a 50 anos. Esbarrão na saída do banco e sair correndo. Naquela época isso não havia no Brasil. Precisamos nos orgulhar de como evoluímos desde então.


f_ Pelé e assalto


no metrô, entre o Brooklin e o Greenwich Village, no trecho sob o rio Hudson, cerca de 22hs30, eu em um vagão vazio. No vagão seguinte um policial lendo algo. Quando o grupo de negros entrou no meu vagão em uma estação, e me exibiu revolver e canivetes, olhei para o policial pela porta entre os vagões, ele viu, abaixou o olhar fingindo que não estava olhando e continuou lendo... Perdi uns 100 dólares e um relógio barato. Pedi para deixarem meu passaporte. O líder do grupo olhou o passaporte, me chamou de Pílí (alusão ao Pelé, único brasileiro famoso) e jogou o passaporte no chão para eu me abaixar e pegar, e assim fazendo-os sentir-se superiores coma humilhaçãozinha. Entendi e obedeci. Ainda bem que ficou por isso.... fiquei achando que o Pelé ajudou e fiquei devendo essa a ele. Foi meu primeiro assalto a mão armada.


g_ apartheid


Era a época do BlackPower e da afirmação dos negros como gente. Havia muitos conflitos, agressões e um rancor latente. A liberação da questão do “apartheid” com lugares para negros e brancos nos ônibus e nas lanchonetes era recente e não era uniforme em todos os Estados. Para nós era uma enorme surpresa e não sabíamos bem como lidar como assunto na prática. Eles nos classificavam como “latinos” e isso significava que tanto os brancos quanto os negros nos olhavam como aliados e ao mesmo tempo com desconfiança: não éramos do outro grupo, mas não pertencíamos ao seu. Me senti segregado. A bem da verdade a maioria era muito amigável inclusive os brancos e os negros entre si e comigo. Por motivos de distúrbios raciais, em Hartford (estado de Conecticut), vivenciamos um “toque de recolher” às 18hs por dois dias.

Ninguém podia andar na rua após as 18hs. Não acreditamos muito no rigor do assunto e do horário. Íamos voltando a pé pela rua para o hotel. Fomos recolhidos pela policia e levados ate o hotel sob uma enorme bronca.


h_ objetividade

Após dois meses circulando pelos EUA numa bolsa de estudos (*), fiquei em Manhattan na casa de um conhecido de nome Arnaldo que, junto com outros (as) amigos (as) dele, acabaram se tornando meus cicerones por New York. Desse grupo, além do Philip uma pessoa que gostava de sair na noite era a bonita e independente Augusta, brasileira e colega de trabalho do Arnaldo, com cerca de 10 a 15 anos mais que meus então 24 anos de idade. Gostávamos de ir aos mesmos lugares quase sempre com mais amigos e amigas dela e um dos lugares prediletos era a “boite” chamada “wednesday”, então na moda. Depois que nos enturmamos conheci o Gabriel, “boy friend” dela, outro brasileiro e engenheiro, da minha idade que fazia um mestrado em Columbia e também morava no Village. Ele me contou que ela era de uma “objetividade americana”. Ou vinha nos encontrar ou passava para nos pegar no Village ou pedia para ele passar pelo apartamento dela para, então, sair. Ela morava muito bem, no east side e tinha um bom carro. Quando pedia para ele passar pelo apartamento dela era porque queria fazer sexo antes de sair. A tese dela era que ao fim da noite os parceiros estão mais cansados e fazem sexo pior. O Gabriel me disse que era um pouco mecânico para o jeito dele mas que era muito bom! Naquela idade, os hormônios explodindo, era só o que faltava, além daquela sorte ainda querer um pouco de romantismo.... Ela era a “fêmea-alpha”, decidia quando, quantas, como e etc. Coisas da época. Época de woodstok, dos hippies, da “pílula”, do baseado, da minissaia, do topless, da guerra aos “sutiens”. Uma época de liberalização dos costumes da aceitação dos diferentes e das diferenças. Teve gente que não entendeu bem, até onde era pra ir. Ou não conseguiu. Ou não quis parar e inverteu os sinais: agora alguns dos preconceituosos são os que eram “preconceituados”.


i_ sequestro de avião


Incluíam-se no grupo selecionado para a “bolsa-de-estudos” do USIS dois colegas de Porto Alegre e um de Brasília, os três recém-formados em arquitetura e na fase infanto-esquerdista da vida. Vestiam-se com indumentária “Che-Guevariana” comprada em butiques especializadas de New York e cumpriam o ritual de externar ou no mínimo insinuar a opinião de que as mazelas do mundo eram devidas aos EUA.


No voo New York – Detroit, o avião acabara de decolar no inicio da noite e percebemos que voltou ao aeroporto (seria La Guardia?) e ao pousar estávamos cercados por carros dos bombeiros e da polícia. Mal o avião parou, no meio da pista, entraram uns militares por uma porta no fundo do avião e foram diretamente no assento do colega de Brasília que foi retirado do avião com sua mochila sem poder sequer se manifestar, tal a surpresa e a rapidez da ação. O colega saiu na horizontal, suspenso por dois fortões, como se estivesse sobre uma padiola, sem estar. Na hora pareceu um treinamento para o qual não nos haviam avisado.


Junto com o brasiliense ficou um dos dois brasileiros que nos acompanhavam pela USIS a título de interpretes. O voo foi retomado com o comandante mandando servir champagne aos passageiros.


Dois dias depois foram juntar-se a nós em Detroit.


A história que o brasiliense nos contou foi: ao embarcarmos, sentamos espalhados pelo avião, e o colega encontrou dificuldades em colocar a sua mochila-guerrilheiro sob o assento da frente, como deve ser feito. Mal o avião decolou uma aeromoça foi tentar ajudar com a mochila e o colega em seu inglês macarrônico, ou de molecagem, nunca saberemos, resolveu referir-se à mochila como “it’s a bomb” (tradução ao pé-da-letra de “é uma bomba”, “um estorvo”). A aeromoça continuou sorrindo e foi contar ao comandante que resolveu não arriscar....


O brasiliense continuou o programa da “bolsa-de-estudos”, mas, ao fim do programa foi o único não autorizado a permanecer nos EUA. Não acharam graça.

Registre-se que, naquela época, no mundo inteiro, foi quando começaram episódios de sequestro e aviões por motivos políticos.


j) ascensão e queda dos impérios


diziam que os USA seriam a primeira nação na história a passar da barbárie à decadência sem passar pela civilização. Saí de lá achando que podia ser que sim e podia ser que não. Decorridos 49 anos, após mais de 20 idas aos USA continuo em dúvida. Muita coisa por elogiar e outras por criticar. Coisas adoráveis e coisas lamentáveis. Como em toda parte, e como toda gente.

(*) ver crônica “ele te trata bem”, neste livro

Miguel Fernández y Fernández

Engenheiro consultor e cronista, mai2016


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