Não tive coragem de fazer esta “reportagem” para “A Forja” sem antes ir à igrejinha ao lado da escola assistir uma missa e encomendar minha alma a Deus e, então, pedir ao prof. Oswaldo uma “carona” em seu Chevrolet 64 (1864), foto anexa.
Expostos os objetivos, o próprio Oswaldo, auxiliou em refazer o histórico do calhambeque: de origem norteamericana. Não se sabe ao certo como chegou ao Brasil mas deve ter sido por volta de 1910. Tinha uma forma diferente da atual.
Provavelmente teve seus dias de glória, mas com o decorrer do tempo, não resistindo ao complexo que lhe. provocava a comparação com as linhas mais modernas de depois da 1ª guerra mundial, a viatura espatifou-se contra um poste da Iluminação a gás do velho Rio.
Seu primeiro dono vendeu-o então “no estado de ferro meio velho” ao seu segundo dono, que, com enorme paciência, juntando as peças que sobraram a uma nova carroceria, deu-lhe um aspecto parecido com o atual: um misto de diligência do velho oeste, dada a sua origem, e de “liteira”, célebre meio de transporte da época da escravatura. Depois de muito rodar, êste segundo dono da viatura, anunciou no jornal, em 1962, que vendia um carro para o ferro-velho.
Muito sorrateiramente, apresentou-se o prof. Oswaldo, dizendo-se agente de ferro-velho, querendo ver o artigo (não teve coragem de dizer ao homem que era para uso próprio). Após marchas e contra-marchas nas negociações, ficou decidido que o carro seria vendido pela astronômica quantia, segundo o nosso professor, de 5 contos de réis, sendo 500$000 à vista, e restante em suaves prestações mensais, em que o comprador pagaria sempre a metade do que ainda devia, com o que o comprador enganou o vendedor, segundo uma aula de matemática em que o mesmo professor já ganhara outro tanto de um aluno.
Atualmente, é um carro de côr verde-escuro que, segundo o proprietário, tem uma “enorme vontade de servir ao próximo” (próximo mecânico). Recentemente, dada a recusa do professor em vender o carro para a “Columbia Pictures”, a série de filmes “Os Intocáveis” teve de ser suspensa, pois acabara-se o estoque de carros último tipo daquela companhia.
Impressões ao viajar
Quando nos dirigimos para o carro, o prof. Oswaldo, o prof. Martinho (carona assíduo) e eu, a primeira pergunta que me veio à mente foi: — Anda?
Entre um sorriso e outro, o professor foi abrindo a porta, arriando o vidro na base do empurro, pois nas quatro janelas as manivelas de acionamento só subiam o dito vidro, e entrando no carro. Enquanto isso eu ia observando os detalhes da estrutura externa do Chevrolata: Rodas da frente visivelmente divergentes. Pneus: três pràticamente no fim, e um em bom estado. Cano de descarga: um pedaço de cano comum; pára-choques só se fôr para choque elétrico, pois é amarrado ao resto do conjunto de latas por barbante (que é um isolante)... achei melhor entrar logo, antes que perdesse a coragem. Entrei!
Fui direcionado para o banco de trás, sem portas (o carro tem duas portas) por isso nem pude voltar atrás. O prof. Oswaldo disse: — 5, 4, 3, 2, 1, zoooooooiin, não pegou, De novo: zonhonhoooin. Nada. O prof. Martinho sai para empurrar. Eu também me ofereço, e fico pensando em que fria fui me meter. Empurramos, e para felicidade geral o carro pega. Entramos de nôvo.
Descrevo o que é o interior do carro: o volante é constituído por um troço que parece uma ex-roda de bicicleta. A alavanca de mudanças é uma barra de aço torcido que emerge de um buraco no assoalho do carro, através do qual se vê a rua. O acelerador é um pedaço de tábua e a embreagem, por incrível que pareça, é um pedal mesmo. Freio de pé não funciona bem, o negócio para na base do braço, numa alavanca à direita do carro, sendo que quem tem de acioná-la é o acompanhante, pois o chofer não alcança. Era cômico e triste ao mesmo tempo, o prof. Oswaldo dirigindo e o prof. Martinho freando. No início, eu não acreditava no que via. Uma coisa não se pode reclamar: o carro é arejado.
De repente, bati com a cabeça no teto; é que o molejo do carro é tão bom, que quando passa em um buraco, ao invés de amortecer o pulo, aumenta-o ainda mais. No teto viam-se três furos na forração — “O 1.º, disse-me o professor, já veio com o carro; o segundo foi a cabeça de meu filho, num buraco da avenida Brasil; e terceiro foi um caixote que eu ia transportando, e num dêsses pulos...
Um barulho estranho de lata solta fazia-se ouvir constantemente quando o carro andava. É que a carroceria está pregada ao chassi por três ou quatro parafusos, mas as folgas são muito grandes disse o Oswaldo. Convém ressaltar o entusiasmo com que o professor ultrapassa os carros parados no meio fio.
— Qual a velocidade máxima?
— 70 km/h na descida
— Podemos ver como é?
— Deixa para quando estiverem vocês dois sozinhos, tá? (disse Martinho).
— Só posso ir a 30 / 40km/h.
— Porquê se êle dá mais?
— A direção está fazendo um “shimmy” fortíssimo, mas é bom que serve para dar corda no relógio. É automático.
Paramos num pôsto.
— Encha o tanque.
— Não temos lenha no momento. Um silêncio.
— Bote gasolina mesmo, 30 litros, e capriche. porque vou passar êstes feriados em Cabo Frio e saio hoje às 5 horas.
— Já comprou as passagens? Outro silêncio.
— Calibre os pneus. 20 “libras” cada um.
— Sabe quanto tem êste aqui? — 2 “libras”.
— Matematicamente faltam 18.
O professor dá gorjeta, mas o homem devolve. Seguimos.
Continuamos o trajeto. Já são 13 horas e saímos do colégio há mais de 15 minutos, pouco trânsito (um milagre, ou então, como nós andávamos devagar o congestionamento era de nós para trás... ), mas ainda estamos no meio da rua Voluntários, ou seja, andamos cerca de 3km.
— Professor, o senhor não pode andar mais depressa?
— Não se preocupe, garanto que dentro de 5 minutos estaremos a cinco minutos daqui. Eu mesmo fiz os cálculos semana passada. Nem tente pois ainda não chegamos nesse ponto da matéria. Caiu um problema semelhante no vestibular do ITA. Ninguém acertou. Envolve logaritmos, análise combinatória, coordenadas cartesianas, e no fim vai dar em uma equação do quarto grau.
A cada “fechada” de um “lotação”, ou a cada palavrão de um outro chofer, ou ainda, quando a barbeirada era nossa (para não deixar tôda a responsabilidade com o “chofer”, uso o plural), eu ia ficando em pior estado-de-nervos.
Finalmente não me contive mais. Ainda faltavam uns 5 quarteirões, de trânsito mais intenso, até a minha casa, quando resolvi dizer ao professor que eu morava ali mesmo, e que ficaria agradecido se pudesse saltar. O professor Oswaldo desengrena, o prof. Martinho freia e o carro para contra o meio fio. Salto com um leve trauma do canto esquerdo da bôca, tremores espalhados pelo corpo e, com a voz trêmula, desejo boa viagem, porém com uma dúvida enorme cá dentro.
Miguel Fernández y Fernández, engenheiro consultor e cronista
Rio de Janeiro, publicado em A Forja, 1964maio? Os professores citados 01_ Oswaldo de Assis Gomes e 02_ Martinho, lecionavam matemática. A crônica é toda baseada em fatos reais e este texto foi reformatado em 2023.
Comments