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Foto do escritorMiguel Fernández

RobertoB

Na revistinha “Seleções do Readers Digest” literatura de bolso americana muito em voga no Brasil nos anos 1950-1970, (traduzida e vendida nas “banca-de-jornal”), uma das seções fixas era sempre o “meu tipo inesquecível”, onde leitores enviavam textos alusivos ao tema e algum redator ou copy-desk da editora dava um bom acabamento. Li muito Seleções e, volta-e-meia, identifico pessoas dignas de serem perpetuadas no papel, pelo folclórico, pelo interessante que são, por alguma habilidade, por destacar-se em algo, pela superação, por algum momento genial, enfim por me marcarem ou por eu ter visto marcarem alguém. Isto tudo porque vou falar de um tipo inesquecível, o RobertoB (10mai1947).


Nos conhecemos nos primeiros dias de aula na Escola de Engenhaira da UFRJ, em 1966. Éramos 4 turmas de 100 e calhou de ficarmos na mesma turma. Êle do Piauí, eu do Rio. Êle grande (1,85m?), expansivo e “feio” (eu também, mas com 1,75 se notava menos). Mas tinha seu charme (eu também, mas era menor). Para completar, com uns meses de aulas, publicou um livro de poesias (“contradição”), impresso em mimeógrafo, tamanho “meio A4”, que saia vendendo a todos e, à noite, ia vender nos cinemas, bares e restaurantes. Onde houvesse aglomerações de jovens, lá ia o Roberto vender seus poemas. Ganhou o apelido de “poeta” e hoje, passados mais de 50 anos de nossa formatura, poucos se lembram quem era o Roberto ou o Broder, mas do “poeta” todos lembram.


Mal se formou voltou para o Piauí. Achava que era sua obrigação para com a província em que nascera e que o formara. Logo foi vice-prefeito de Parnaíba, sua cidade natal e teve sucesso profissional como empresário. Tive a sorte de poder conviver com ele um pouco mais perto porque, por volta de 2002 a 2007, consegui trabalhar no Piauí e para o Piauí, graças a uma mãozinha que o colega me deu e que contarei em outra crônica pois também é uma estória digna de registro.


Nesses 5 anos de trabalho no Piauí, fui umas 6 a 8 vezes a Therezina (e o Roberto veio umas 5 vezes ao Rio), o que acabou por nos propiciar compartilhar muitas garrafas de cachaça e muitas horas de conversa. Das histórias que ouvi destaco essa:


Por volta dos anos 1925 a 1935, a Europa passava sérias crises, com fome e êxodo para as américas. Judeus e espanhóis, especialmente os jovens, não conseguiam sequer sair dos países onde viviam. Os espanhóis porque a guerra civil se prenunciava e ambas as facções queriam soldados, ou seja, passaporte nem pensar. Os judeus porque estavam num limbo jurídico-institucional, com muitos Estados europeus, instigados por discursos de ódio demagógico, se achando desobrigados para com a “nação judaica” e muitos países das Américas lhes dificultando os vistos.


Conclusão, tudo favorecia os conluios para que as pessoas se deixassem enganar ou iludir: a fome, a falta de alternativas, as perseguições. O Novo Mundo era um sonho e uma possibilidade real. O Nirvana! As pessoas eram facilmente cooptadas para virem trabalhar na américa do sul. Argentina era um paraíso, Buenos Aires uma das 5 melhores cidades do mudo de então, o Uruguai era a Suíça do hemisfério sul (por causa dos bancos com contas numeradas). Muita gente dava certo e as notícias chegavam de volta nos lugares de onde haviam saído. Principalmente as dos que davam certo ou só as dos que davam certo, mas quem ligava para os outros?


As famílias chegavam a assumir empréstimos para pagar as passagens ou permitiam que agentes aliciadores os levassem, com ou sem os filhos, ou só os filhos(as), já saindo com dívidas a serem pagas, sabe-se lá como. Entravam nos porões dos navios como gado, foi uma nova escravidão, branca. E não tem grupo étnico ou nacional que não tenha gente boa e gente má.


Não foi diferente com os judeus europeus. As famílias acabavam, até por falta de opção, confiando filhas e filhos a vigaristas e malandras(os), pois vigaristas não podem ter cara de vigaristas, então, normalmente são pessoas encantadoras. Nessa seara a américa do sul se encheu de escravos(as) brancos(as). No Rio de Janeiro “polaca” chegou a ser sinônimo de prostituta. Muitas eram judias, tiveram até que fazer um cemitério seu pois a comunidade judaica não as acolhia nos seus cemitérios (é o Cemitério Israelita de Inhaúma, ou leiam o livro Ciclo das Águas de Moacyr Scliar e outros lá citados).


Um “causo” foi assim: a família concordou que três filhas viessem para trabalhar na Argentina desde que acompanhadas pelo irmão, então com cerca de 18 anos. Aqueles navios, que quando iam levavam carne de sol, salgada, defumada, trigo, enfim, comida, imagina o cheiro na volta, com os porões repletos de gente, vinham vindo e quase todos davam uma paradinha no Brasil (Recife, Salvador, Rio, Santos) para reabastecer e esticar as pernas. Ali, em Recife, o “guia da excursão”, também judeu, desceu com o garoto de 18 anos e deu um jeito de deixa-lo em terra e seguir só com as irmãs.


O garoto, que só falava polonês, passou um “perrengue”, até que acabou vendo uma estrela de David numa loja e foi ajudado por algum judeu pernambucano, que lhe conseguiu trabalho de ajudante de caixeiro viajante. Em cinco anos o rapaz já dominava o ofício e, para não competir com o primeiro patrão, foi ocupar uma “praça” mais adiante, lá para o Piauí. Acabou se instalando em Parnaíba. Muito tempo depois, por cartas soube que suas irmãs foram ser prostituídas em Montevidéo e Buenos Aires.


Esse caixeiro viajante, de nome Jacob (Jacob Krim VelBroder), casou-se com uma da terra (dona Morena) e teve filhos, um deles o meu amigo Roberto, que com a voz embargada e lágrimas nos olhos, me contou essa história, ou mais ou menos essa, ouvida também com emoção e lágrimas nos meus olhos (meu pai, espanhol, chegou ao Brasil na mesma época, também sem documentos, portanto eram ambos ilegais!).


Grande Roberto, meu colega e meu amigo, morreu em 2021 com a covid19, que já havia frustrado nosso encontro marcado para abril de 2020 em OPorto, Portugal, para onde nós dois e mais uns 18 colegas já tínhamos as passagens compradas visando comemorar os 50 anos de formados. Achei que não podia deixar de registrar essa epopeia, como uma homenagem ao Roberto, a seu pai e a suas tias, que estão no céu. Quantas histórias como essas não são contadas ou registradas por falta de oportunidade, por pudor, por preconceitos (vergonha), ou pelo que seja. Acho que ajuda a melhorar o mundo saber as dificuldades por que nossos antepassados passaram. Todas as famílias têm estórias semelhantes, que só nos chegam em fragmentos, mas que merecem ser registradas pois engrandecem.


Miguel Fernández y Fernández, engenheiro e cronista,

Escrito em maio2023, 6.500 toques,

com ajuda da Tarsila Broder, via www.RobertoBroder.com



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